Haicai da poça d'água


José Marins*


Em reunião semanal de leitura de livros de haicai lemos 33 autores. Percebemos várias vezes a repetição do haicai da poça d'água. Alguns se mostraram interessantes, outros caíram no lugar comum. Haveria algum haicai que teria começado esse tipo de registro?


Afrânio Peixoto, pioneiro do haicai brasileiro, publicou em 1931:

Na poça de lama
Como no divino céu,
Também passa a lua.  

O poema não chamou a atenção o suficiente para ser imitado em publicações posteriores.

É provável que tenha sido um haicai de Millôr Fernandes que estimulou a realização de haicais da poça d'água, com ou sem lua e outros reflexos:

Na poça da rua
O vira-lata
Lambe a Lua.

Este haicai saiu em 1968 no livro do Millôr, Hai-Kais, pela editora Senzala. E se manteve nas edições posteriores (Nórdica, 1986 e L&PM 1997). Com certeza a notoriedade e a constância dos poemas, textos e desenhos do autor ao longo dos anos em O Cruzeiro, Veja e livros, ajudaram a fazer a fama do haicai da poça d'água.

Recebi outro dia da poeta Rose Mendes a foto de uma poça de chuva na qual aparece pousado um pássaro com a sombra refletida. A configuração é, por si só, uma ótima imagem de haicai. Rose tentou fazê-lo mas desistiu. Ela fez outro anteriormente, com inovação e graça, publicado no seu livro Nas Ondas do Haicai:

Depois do aguaceiro
brincam os passarinhos
na poça d’água

Resolvi convidar alguns poetas de haicai para a brincadeira: tomar a foto como referência e realizarem o poema. Comento a seguir algumas colaborações que gentilmente me foram
enviadas, e que, penso, têm um foco na cena retratada naquela foto: 

A. A. de Assis:

Pássaro na poça.
Nem só de canto ele vive,
mas também de insetos.

– A sugestão do poema é a de que o pássaro só está na poça em razão de caçar para sobreviver. Portanto, nada de reflexos, mas a luta do dia a dia.

Carlos Bueno:

a poça d’água
reflete o pássaro, sua
única companhia

– Aqui temos uma inusitada imagem para o reflexo na poça: a solidão do pássaro.

Edu Hoffman:

pássaro na poça
faz lembrar minha infância
meu olhar adoça

– Um haicai guilhermino no qual pássaro e poça remetem à lembrança, mas sobretudo a um momento de ternura.

José Marins:

da chuva a poça – 
do pássaro o pouso
para uma foto

– Um haicai livre que brinca com os verbos pousar e posar.

Suzana Lyra Strapasson:

A terra molhada
Sustenta na poça o
Pássaro cantante.

– Outro haicai ligado a canto e sustento. A sugestão faz uma delicada ligação entre poça e canto, beleza e humildade.

Teresa Cristina Cerqueira:

A água da poça –
Sabe-se feliz o pássaro
Que vive na roça

– Se vive na roça, basta uma poça para ser feliz? Talvez o pássaro é que sabe.

Van Zimerman:

tarde fria – 
nas cores da poça d'água
o pássaro

– Um haicai livre com uma bela sugestão: ao invés do reflexo são as cores que trazem o pássaro.

--------
Curitiba, outono de 2017

Fernandes, Millôr. Hai-Kais. Rio de Janeiro: Senzala, 1968.
Mendes, Rose. Nas ondas do haicai. Jundiaí: In House, 2014.
Peixoto, Afrânio. Miçangas. São Paulo: Editora Nacional, 1931.


* José Marins é poeta. 
Publicou, entre outros livros, as coletâneas de 
haicais Poezen (1985) e Pinhapinhão, 
pinhão-pinheiro (2004) e os minicontos de 
A brisa é você (2010). 
Vive em Curitiba (PR).

Nenhum comentário:

Postar um comentário