Extratos da nossa reunião de 13/12/2020

Nosso Mestre de Cerimônias Jonas Rodrigues de Matos conduziu a reunião

A Acadêmica Neusi Berbel procedeu à leitura do nosso Credo Acadêmico


Caros confrades e confreiras, convidados e visitantes – sejam bem-vindos!
Na origem da vida psíquica há o silêncio. É aquele momento crucial entre o findar do tempo uterino e encontro com o mundo externo. O grito, o choro, o espernear em desespero que se seguem ao ato vital de respirar após o nascimento, encontram guarida no acolhimento carregado de afetos oferecidos por um adulto disposto a ajuda-lo a encontrar-se consigo mesmo. O início do mundo psíquico se dá a partir deste encontro com o que vem de fora, com o outro. Aquele que interpreta as exigências vitais e os estímulos externos de modo a apaziguá-los, torna-los toleráveis  e, assim, desenvolver, na interação do sujeito-bebê e o objeto-adulto, o princípio de desprazer/ prazer. As “imagens de movimento” oferecidas pelo adulto para ajudar no arranjo entre as excitações e os movimentos de contenção do bebê caminham junto com as pulsões de lançar-se ao mundo e fugir dos temores que este representa, como o desconhecido e o intolerável. Entretanto, mesmo lançados que somos a este mundo de estímulos, não deixamos de buscar aquela experiência nirvânica, “ tipo de gozo de quietude, ou seja, de ordem qualitativa, miticamente anterior ao estado de desamparo” ao qual me referi no início do texto (Delouya, D., 2020, p. 51). Experiência que é rompida pela introdução da realidade, das “exigências vitais de dentro e de fora” que são atendidas pela condição ontológica e necessária de prosseguir a vida (idem, p.51). Ao mesmo tempo, nesta experiência reside a capacidade de estabelecer ligações com o objeto. Ou seja, é preciso contenção, certa passividade para experimentar prazer no encontro com o outro. Conseguimos, assim, registrar traços e trilhas, fontes da memória e da possibilidade de reaprender com a experiência. Alguns tentam recuperar este estado de plenitude experimentado num átimo de tempo, através da meditação, da oração, de práticas rituais religiosas variadas, de contato com a natureza, mas também, através das drogas, do consumo compulsivo, do culto narcísico extremo ao corpo, e outras formas, cujos efeitos nefastos não vou abordar, pois não é este o tema desta palavra.  
Porque estou a lhes dizer isto? Porque estamos num mês em que se comemora um nascimento. O significado deste nascimento se perdeu em meio a ação das forças de mercado e, em especial, à busca ilusória de prazer a qualquer custo. Muitos povos tem rituais cujo propósito é o encontro com o eu interior. Nossa civilização ocidental, cristã, tem no Natal o momento de celebrar este encontro do ser humano consigo mesmo. É o momento de recolher-se, de conter os impulsos de excitação em direção à descarga. É o momento de silenciar, de meditar, de oferecer e receber acolhimento que nos alivie da experiência de desamparo e dor inerentes à nossa existência. Experiências, essas, intensificadas neste ano tão traumático. 
Obs.: Este texto foi inspirado no artigo do Psicanalista Daniel Delouya,  Além do Princípio do Prazer: Entre pulsões, vida e morte”. Revista Brasileira de Psicanálise, v. 54, nº 1-2020.
Na qualidade de presidente da Academia e, em nome da Diretoria, faço votos para que se fortaleçam frente às agruras vividas neste ano e conduzam suas vidas com muita criatividade e amor ao longo de 2021!
Acadêmica Ludmila Kloczak

Acadêmico Sergio Alves Gomes

No momento “Palavra do Orador”, foi, pela Presidente Ludmila Kloczak, concedida a palavra ao Acadêmico e Orador Sergio Alves Gomes, o qual, ao saudar todos presentes e agradecer à Presidência  pela oportunidade de pronunciar-se, destacou de modo especial a presença da escritora  Adelia Maria Woellner, membro da Academia Paranaense de Letras, relembrando o Orador ter sido ela sua Professora, na graduação em Direito,  homenageada como Patronesse de Turma, na Pontifícia Universidade Católica do Paraná, em Curitiba.
Em seguida, GOMES esclareceu que, em razão do 72º ANIVERSÁRIO DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, ocorrido no dia 10 do corrente mês de dezembro, dedicaria o tempo de sua comunicação para expor, brevemente, alguns aspectos relevantes da referida Declaração, fazendo-o nos seguintes termos:

1. Significado e Importância da Declaração para a Humanidade

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada e proclamada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, pela Resolução 217 A (III). (1) Sua importância é assim destacada pelo   jurista e Prof. emérito da Faculdade de Direito da USP, Celso Lafer: “foi um acontecimento histórico de grande relevância. Pode ser considerada  um evento inaugural representativo de uma nova concepção da vida internacional ao afirmar, pela primeira vez, em escala planetária, o papel dos Direitos Humanos na convivência coletiva”.(2)  E acrescenta o mesmo autor: “A Declaração é o primeiro texto de alcance internacional que trata de maneira abrangente da importância dos direitos humanos. Neste sentido é um marco na afirmação histórica da plataforma emancipatória do ser humano representada pela promoção dos direitos humanos como critério organizador e humanizador da vida coletiva na relação governantes-governados. No plano internacional, representa [...] a passagem do dever dos súditos para os direitos dos cidadãos”. (3)
Durante a Segunda Guerra Mundial, a região central da Europa - especialmente Alemanha e Polônia - foi ocupada pela sordidez dos crimes de genocídio, nos campos de concentração, como os de Auschwitz, Treblinka, Sobibor e tantos outros. Neles, milhões de seres humanos foram exterminados, como vítimas da violência estimulada pela insana ideologia defensora de uma raça pura. Passada a hecatombe, restavam seus escombros como retrato e prova cabal da capacidade humana também para arquitetar e realizar a destruição e a prática do mal contra a própria humanidade.  Diante de tal cenário, a consciência moral, jurídica e política dos povos que perceberam a gravidade dos acontecimentos não tinha como justificar-se para ficar alheia ao ocorrido e seguir avante como se nada tivesse acontecido de mal para o mundo todo, um mal tão incomensurável que, segundo Hannah Arendt, foi, em verdade, “banalizado”.(4)  Foi neste contexto de pós-II guerra  que  quarenta e oito  países – dentre eles o Brasil- reunidos na III Assembleia Geral das Nações Unidos (o Palais de Chaillot, de Paris),  aprovaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos.  

2. ESTRUTURA DA DECLARAÇÃO 

O texto aprovado é composto por um preâmbulo e trinta (30) artigos. O preâmbulo apresenta as razões pelas quais se fez necessária tal proclamação e convoca “todos os povos e todas as nações” do mundo a promoverem os direitos humanos que integram a Declaração. Vale destacar algumas destas razões porque não apenas justificam os direitos declarados, mas também inspiram o novo arcabouço jurídico que virá a se desenvolver no âmbito do Direito Internacional, de modo a ensejar o nascimento e desenvolvimento do “Direito Internacional dos Direitos Humanos”. E isso ocorre não somente como reação à barbárie vivenciada nas duas Grandes Guerras  mas, sobretudo, como  prevenção a favor de um futuro humano livre das múltiplas formas de dominação, escravidão  e destruição possíveis e já vivenciadas,  em razão da “vontade de poder” sem limites, demonstrada pelos horrores dos fatos e atos que jamais devem ser esquecidos pela humanidade, para que não se repitam. 
O preâmbulo afirma “que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”; reconhece “que o desprezo e o desrespeito pelos direitos da pessoa resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que as pessoas gozem de liberdade de palavra, de crença e de liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum”; apregoa “que os direitos da pessoa sejam protegidos pelo império da lei, para que a pessoa não seja compelida, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão”; considera “essencial promover o desenvolvimento das relações amistosas entre as nações”; lembra “que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta (das Nações Unidas- adotada pela Conferência de São Francisco, em 26 de junho de 1945 e ratificada pelo Brasil em 21 de setembro daquele mesmo ano), sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos do homem e da mulher, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla; destaca também “que os Estados-membros se comprometeram a promover, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos e liberdades fundamentais da pessoa e a observância desses direitos e liberdades”; por fim,  considera  “que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso”. Na sequência, ao proclamar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o texto a qualifica  “como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforcem, através do ensino e da educação, em promover o respeito a esses direitos e liberdades e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, em assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados-membros quanto entre os povos dos territórios sob a sua jurisdição”. (5) 
Para a melhor compreensão da estrutura composta pelos trinta (30) artigos da Declaração,  Celso Lafer invoca a lição de René Cassin, professor de Direito, ex-combatente da primeira Guerra Mundial, diplomata e “um dos construtores da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU”.(6)  Para Cassin, a Declaração é vista “como o pórtico do templo dos direitos humanos, um templo que pressupõe a ‘dignidade inerente a todos os membros da família humana’ afirmado no primeiro dos considerandos do preâmbulo. A base deste pórtico é o princípio da generalização [...]. A generalização se baseia no princípio da igualdade em dignidade de direitos (art. 1º) e no seu corolário lógico, o princípio da não discriminação de qualquer espécie ou natureza (art. 2º).” Estes dois enunciados têm por destinatários todos os seres humanos, os quais “devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade, posto que são dotados de razão e consciência” .  Quatro colunas se erguem sobre este pórtico, todas com igual importância. A primeira coluna trata dos direitos e liberdades de natureza pessoal, previstos nos artigos 3 a 11: vida, liberdade, segurança e dignidade da pessoa; igual proteção perante a lei; garantia contra a escravidão, a tortura, as detenções e penas arbitrárias e o direito de recorrer ao Judiciário contra abusos do poder.  A segunda coluna é composta pelos “direitos do indivíduo no seu relacionamento com os grupos a que pertence e as coisas do mundo exterior. São elencados nos arts.12 a 17.  O direito à vida privada e à intimidade, o direito à liberdade de locomoção e ao asilo em caso de perseguição, o direito à nacionalidade, o direito, em pé de igualdade, de homens e mulheres de casar, de criar uma família, de ter um lar, um domicílio e o direito à propriedade, só ou em sociedade com outros.” Na terceira coluna estão os direitos previstos nos artigos 18 a 22: a liberdade de consciência, de pensamento, de crença, de palavra, de expressão, de reunião, de associação, de tomar parte na vida política, de participar de eleições livres e periódicas.  A quarta coluna é composta pelos direitos econômicos, sociais e culturais, contemplados nos arts. 22 a 27: direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, à seguridade social, às liberdades sindicais, à educação, ao descanso, à vida cultural e à proteção da criação intelectual e artística. “O topo das quatro (4) colunas é arrematado por um frontão que assinala os laços entre o indivíduo e a sociedade. São os artigos 28 a 30. Neles se proclamam: (i) a necessidade de uma ordem social e internacional no âmbito da qual os direitos e liberdades da pessoa possam ter pleno efeito; (ii)os deveres para com a comunidade na qual o desenvolvimento da pessoa é possível; (iii) a obrigação do estado, grupos ou pessoas de não praticarem atos contrários ao estipulado na Declaração”. (7) 

3. OBRIGATORIEDADE E DESDOBRAMENTOS DA DECLARAÇÃO 

A obrigatoriedade do respeito ao conteúdo da Declaração pelos Estados que  integram as Nações Unidas fica evidenciada na síntese da jurista brasileira FLÁVIA PIOVESAN, membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Observa ela que o entendimento legalista segundo o qual a Declaração Universal por ter a forma de declaração e não de tratado não apresenta força jurídica obrigatória e vinculante, “ensejou o processo de  ‘Juridicização’ da Declaração, concluído em 1966 com a elaboração de dois distintos tratados internacionais – O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.  Formou-se, desse modo, a Carta Internacional dos Direitos Humanos, ou a International Bill of Rights, integrada pela Declaração Universal de 1948 e pelos dois Pactos Internacionais de 1966. [...] A Carta Internacional dos Direitos Humanos inaugura o sistema normativo global de proteção desses direitos, ao lado do qual já se delineava o sistema regional de proteção. A sistemática normativa de proteção internacional dos direitos humanos faz possível a responsabilização do Estado no domínio internacional quando as instituições nacionais se mostram falhas ou omissas na tarefa de proteção dos direitos humanos.” E mais adiante acrescenta a mesma autora: “Em suma, no sistema internacional de proteção dos direitos humanos, o Estado tem a responsabilidade primária pela proteção desses direitos, ao passo que a comunidade internacional tem a responsabilidade subsidiária, quando falham as instituições nacionais”. (8)
Por último, cabe destacar que, inspirados na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, além dos dois Pactos de direitos já mencionados que com ela compõem a Carta Internacional dos Direitos Humanos, múltiplos Instrumentos internacionais - tanto de alcance global (sistema global) quanto de alcance regional (sistema regional interamericano) -  foram produzidos e ratificados pelo Brasil, para a proteção tanto de ordem geral (proteção destinada a todas as pessoas) quanto de ordem especial (proteção destinada às pessoas em situações especiais de vulnerabilidade). São alguns exemplos de tais instrumentos: a  Convenção para a prevenção e repressão do crime de genocídio (ratificada em  1951); Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penais cruéis, Desumanos e Degradantes (ratificada em 1989); Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher (ratificada em  1984); Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial (ratificada em 1968); Convenção sobre os Direitos da Criança (ratificada em 1990); Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ratificada  em 2008); Convenção Americana de Direitos Humanos (ratificada em  1992); Convenção  Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (ratificada em 1995).(9) 

CONCLUSÃO

 O 72º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos convida todos para melhor conhecer, compreender, respeitar e exigir, especialmente das autoridades constituídas, com base na Constituição de 1988 e de todos os tratados e convenções dos quais o Brasil é signatário, a efetiva prevalência, promoção e concretização dos direitos humanos. A Cultura dos direitos humanos é a cultura da humanização do próprio homem em suas relações com seus semelhantes. Tanto na esfera pública quanto no espaço privado. Deve ser sempre valorizada e muito mais neste momento em que   a humanidade se vê desafiada pela maior crise desde a segunda guerra mundial, em razão da atual pandemia, cujas dimensões são múltiplas e traumáticas. (10) Oxalá, que  deste sofrimento coletivo, ainda que  mesclado de egoísmo, cegueira e negacionismo de alguns, exsurja a percepção de que os direitos humanos compõem o núcleo ético, jurídico e político da democracia, a qual tem sofrido contínuos ataques, especialmente do denominado “nacional-populismo”.(11)  Sem direitos humanos não há democracia e vice-versa, porquanto somente onde se reconhece a dignidade inerente a todo ser humano os direitos humanos fazem sentido, pois é pelo grau de efetividade deles que se constata, na prática, o valor atribuído pela sociedade a cada ser humano que dela faz parte. Que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, por suas razões  e conteúdo de fraternidade e solidariedade, toque a razão  e a sensibilidade  de todos a fim de que nos tornemos , efetivamente,  mais humanos, não apenas em palavras e aparência, mas na essência, pelo modo de ser e de estar no mundo. Um mundo que está a exigir menos competição e mais cooperação, menos guerras e mais diálogo, menos   indiferença e mais empatia, menos ódio e inveja e mais amizade entre pessoas, povos e nações. 
Feliz NATAL e abençoado ANO NOVO, com muita paz e alegrias a todos!

Notas:
(1) Cf. Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). In: VILHENA, Oscar Vieira (org.) Direitos Humanos: Normativa Internacional. São Paulo: Max Limonad, 2001, p.15.
(2) Cf. LAFER, Celso. Direitos Humanos: um percurso no Direito no século XXI, vol. 1. São Paulo: Atlas, 2015, p.3. 
(3)Cf. LAFER, Celso. Opus cit. p.5.
(4)Cf. ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.  
(5)Cf. VILHENA, Oscar Vieira (org.), op. cit. p.15/16. 
 (6) Cf. AGI, Marc. René Cassin, um dos construtores da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU. Disponível em:  http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/a_pdf/cassin_construtor_dudh.pdf. Acesso em 11/12/2020. 
(7) Cf. LAFER, Celso. Op. cit. p. 35/36.
(8) Cf. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, 18ªed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 506/507.
(9) Idem, p. 519/523.
(10) Cf. a respeito BIRMAN, Joel. O Trauma na Pandemia do Coronavírus: suas dimensões políticas, sociais, econômicas, ecológicas, culturais, éticas e científicas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.
(11) Cf. sobre este tema EATWELL, Roger; GOODWIN, Matthew. Nacional-populismo: a revolta contra a democracia liberal. Rio de Janeiro: Record, 2020.
 

DIREITO AO TRABALHO DIGNO E À EDUCAÇÃO DE QUALIDADE
* Acadêmica Dinaura Godinho Pimentel Gomes

INTRODUÇÃO

Cumpre-me desde logo DESTACAR que o conceito estruturante de Estado Democrático de Direito tem como ponto central a pessoa humana com sua dignidade. E é através de um trabalho digno que se dá a inserção dos integrantes da grande maioria da população ativa no Sistema Econômico, Social e Jurídico, garantidor de um patamar civilizatório essencial à realização de todos como cidadãos e ao sentido de suas próprias vidas. Nesse contexto, a educação de qualidade se apresenta como um dos meios indispensáveis para se garantir o acesso aos novos postos de trabalho, principalmente nesta era digital de expansão da inteligência artificial e da robótica, em plena Revolução 4.0.

2. DIREITO À EDUCAÇÃO DE QUALIDADE PARA A FORMAÇÃO DO CAPITAL HUMANO

Para o enfrentamento dos desafios advindos dessas transformações sob o influxo das inovações tecnológicas, o crescimento econômico do país, proporcionado pela elevação da produtividade, passa a depender sempre mais da efetiva formação de capital humano. Verifica-se a importante manutenção e expansão de contínuos esforços de instituições internacionais, a congregar várias nações em prol da educação de qualidade para todos, a exemplo do que relata LIMA (2019, p. 58): 
Em 2015, foi realizado o Fórum Mundial da Educação, em Incheon, na Coréia do Sul, no qual se adotou a “Declaração de Incheon e o Marco de Ação da Educação Rumo a uma Educação de Qualidade Inclusiva e Equitativa e à Educação ao Longo da Vida para Todos”. O fórum, mais uma vez organizado sob a liderança da Unesco com a participação de 160 países, com mais 120 ministros, chefes e membros de delegações, líderes de agências e funcionários de organizações multilaterais e bilaterais, além de representantes da sociedade civil, docentes, movimento jovem e setor privado. Todos comprometidos em estabelecer o balanço da realidade no campo da educação no mundo, com vistas a apresentar uma nova agenda para a educação até 2030 [...].
A nova agenda enfatiza o compromisso com a educação voltada para valores humanísticos, com base nos direitos humanos, no respeito à dignidade da pessoa, na justiça social, no respeito à diversidade e à igualdade de gênero, na responsabilidade dos Estados em promovê-la, na prestação de contas compartilhadas, entre outros.  
 A referida Declaração proclama, com nitidez, o poder transformador da educação como a maior ferramenta para se atingir o pleno emprego e a erradicação da pobreza, ao fomentar o desenvolvimento de habilidades relevantes direcionadas ao desempenho de pontuais competências técnicas e profissionais. Além disso, invoca a educação como meio de inclusão social a favorecer  a promoção da democracia  e dos direitos humanos, da cidadania global e do engajamento civil, bem como do desenvolvimento sustentável.                              
Nessa ocasião, tendo a participação da UNESCO, são invocados os compromissos assumidos com a promoção da educação de qualidade até 2030, nos seguintes termos:   
Comprometemo-nos com uma educação de qualidade e com a melhoria dos resultados de aprendizagem e de mecanismos  para medir o progresso. Garantiremos que professores  e educadores sejam empoderados, recrutados adequadamente, bem treinados, qualificados profissionalmente, motivados e apoiados em sistemas que disponham de bons recursos e sejam eficientes e dirigidos de maneira eficaz. A educação de qualidade promove criatividade e conhecimento e também assegura a aquisição de habilidades básicas em alfabetização e matemática, bem como habilidades analíticas e de resolução de problemas, habilidades de alto nível cognitivo e habilidades interpessoais  e sociais. Além disso, ela desenvolve habilidades, valores e atitudes que permitem aos cidadãos levar vidas saudáveis e plenas, tomar decisões conscientes e a desafios locais e globais por meio de educação para o desenvolvimento sustentável (EDS) e da educação para a cidadania global [...].  (UNESCO, 2015). 
Convém trazer à baila, o disposto no art. 13,1, do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais – resultante da juridicização da Declaração Universal dos Direitos Humano - adotado pela   XXI Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 19 de dezembro de 1966 e ratificado pelo Brasil em 6 de julho de 1992:
 Artigo 13,1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda em que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre. (PIDESC).
Em sintonia, na Constituição da República Federativa do Brasil, em vigência desde 1988, a educação e o trabalho se apresentam inseridos no rol dos direitos fundamentais sociais, conforme está previsto no art. 6º:  “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.
A educação está configurada, assim, como uma das devidas prestações positivas, obrigatórias, por parte do Estado brasileiro em favor do pleno desenvolvimento de toda e qualquer pessoa. A especificação mais detalhada do direito à educação consta dos artigos 205 a 214, da mesma Lei Maior, sendo certo que o artigo 205 assim dispõe: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.                                          
Para o Banco Mundial, o capital humano consiste no conhecimento, habilidades e saúde acumuladas por pessoas no decorrer de suas vidas, o que lhes permite realizar seu potencial como membros produtivos de uma sociedade. Em 11 de outubro de 2018, o mesmo Banco Mundial divulgou o Índice de Capital Humano, durante a reunião anual entre a instituição e o Fundo Monetário Internacional (FMI) na Ilha Indonésia de Bali. De suas aferições, apresenta o seguinte resultado, dentre 157 países: 
O índice, realizado em forma de ranking, analisa os países em função dos investimentos em saúde e educação para o desenvolvimento do capital humano [...]. O Brasil aparece em 81ª posição, bem abaixo de vizinhos do continente como Argentina (63º lugar) Equador (66º) ou Peru (72º). Entre os latino-americanos, o Chile é o que aparece em melhor situação, no 45° lugar. O dispositivo, que avalia critérios como escolarização e pautas de saúde, foi liderado por países asiáticos. Singapura está no topo da lista, seguido de Coreia do Sul, Japão, Hong Kong. (BANCO MUNDIAL).
Lamentavelmente, no Brasil, segundo Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), em 2019, a taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais ficou em 6,6%, o que corresponde a 11 milhões de pessoas. Mais da metade dos analfabetos (56,2% ou 6,2 milhões) viviam na região Nordeste e 21,7% (2,4 milhões de pessoas) viviam no Sudeste. Das 50 milhões de pessoas de 14 a 29 anos do país, 20,2% não completaram alguma das etapas da educação básica, seja por terem abandonado a escola antes do término desta etapa, seja por nunca a terem frequentado. Nesta situação, portanto, havia 10,1 milhões de jovens, dentre os quais, 58,3% de homens e 41,7% de mulheres. Apesar da proporção de pessoas de 25 anos ou mais com ensino médio completo ter crescido no país, passando de 45,0% em 2016 para 47,4% em 2018 e 48,8% em 2019, mais da metade (51,2% ou 69,5 milhões) dos adultos não concluíram essa etapa educacional. É o que mostra o módulo Educação, da PNAD Contínua 2019, divulgado em 15 de julho de 2020 pelo IBGE.               
Concomitantemente, a realidade aponta que, no último trimestre deste ano, segundo pesquisa do IBGE, o número de desempregados alcançou 14,1 milhões  trabalhadores (IBGE). 

3. O DIREITO AO TRABALHO DECENTE NO ÂMBITO DA SOCIEDADE  DIGITALIZADA
Verifica-se que o mundo do trabalho encontra-se em plena ebulição diante de inovações tecnológicas permanentemente introduzidas, configuradas como a Quarta Revolução Industrial. 
Convém esclarecer que a inicial difusão do termo Revolução 4.0 ou Quarta Revolução Industrial ocorreu em 2012, em Hannover, Alemanha, sendo certo também que, em janeiro de 2017, no Fórum Econômico de Davos, foram apresentados alguns dos elementos marcantes dessa Revolução, concentrada para o uso das nanotecnologias, neurotecnologias, biotecnologias, robôs, inteligência artificial, drones, sistemas de armazenamento de energia e impressora 3D.
Para Klaus Schwab, fundador e presidente executivo do Fórum Econômico Mundial, as contemporâneas mudanças impostas pela introdução das inovações tecnológicas específicas dessa quarta revolução industrial atingem primordialmente as relações de trabalho, ensejando a criação de novas modalidades de empregos e o aniquilamento de muitos outros, hoje existentes. Apesar de um excessivo índice de desempregados no mundo, existem vagas não ocupadas para trabalhadores bem qualificados para atividades de inovação e criatividade funcional no desempenho produtivo, que exigem contínua capacitação e adequação.   E assim sintetiza: 
Estou convencido que o talento, mais que o capital, representará o fator crucial da produção. Por essa razão, a escassez de uma força de trabalho capaz, mais que a disponibilidade de capital, terá mais probabilidade de constituir o limite incapacitante da inovação, competitividade e crescimento [...] Essas pressões também irão nos forçar a reconsiderar o que entendemos por “alta competência” no contexto da quarta revolução industrial. As definições tradicionais de trabalho qualificado dependem da presença de educação avançada ou especializada e um conjunto definido de competências inscritas a uma profissão ou domínio de especialização. Dada a crescente taxa de mudanças tecnológicas, a quarta revolução industrial exigirá e enfatizará a capacidade dos trabalhadores em se adaptar continuamente e aprender novas habilidades e abordagem dentro de uma variedade de contextos. (SCHWAB, Klaus, 2016 p. 15,16 e 51).
Assim, mudanças estruturais imediatas são essenciais, no campo da educação, para o enfrentamento de grandes desafios advindos da integração dos mundos físico e digital, que alteram substancialmente o modo e o conteúdo das prestações laborais, cada vez mais dependentes do alto nível de capacitação e gestão, para o acesso a postos de trabalho.. 
Eis as pertinentes perspectivas lançadas por Hubert Alquéres:
A OCDE é um fórum multinacional. Entre suas ações voltadas para a educação está o Pisa, respeitado sistema internacional da avaliação do ensino, cujos resultados servem de parâmetro para países identificarem a qualidade de sua educação e, a partir daí, traçar políticas públicas para a sua melhoria.
A inquietude tem razão de ser quando se leva em consideração dados do  Fórum Econômico Mundial, segundo os quais 65% dos trabalhos que os jovens, que hoje estão na educação básica,  realizarão ao final de seu percurso escolar, ainda nem foram inventados. Estima-se que, em um período de dez a quinze anos, 47% dos atuais postos de trabalho desaparecerão, com a robótica e a inteligência artificial, substituindo o homem em atividades rotineiras; manuais ou intelectuais.
Nesse quadro, o desafio da educação é formar jovens para empregos que ainda não foram criados, para tecnologias ainda não inventadas, para solucionar problemas que não foram previstos ainda, mas que serão uma realidade quando concluírem seu ciclo escolar e estiverem aptos a ingressar no novo mercado de trabalho. (ALQUÉRES, 2019, p. 39)

CONCLUSÃO
Para concluir, cabe ressaltar o inteiro teor do art. 170, da atual Constituição da República Federativa do Brasil, que assim dispõe:
Art. 170 A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social: observados os seguintes princípios:  I -  soberania nacional;  II -  propriedade privada; III -  função social da propriedade; IV -  livre concorrência;  V -  defesa do consumidor; VI -  defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII -  redução das desigualdades regionais e sociais; VIII -  busca do pleno emprego;  IX -  tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. (destacamos em negrito). 
Indubitavelmente, não há como se alcançar o desenvolvimento sustentável do País sem o acesso à educação de qualidade e ao trabalho decente, principalmente diante de milhões de pessoas analfabetas e desempregadas, que compõem os maiores índices de exclusão social, inclusive em decorrência da pandemia do Covid-19. Portanto, impõe-se ao Estado brasileiro assumir com mais eficiência e eficácia sua responsabilidade constitucional no tocante à implementação dos direitos fundamentais sociais, dentre os quais a educação de qualidade para o acesso ao trabalho digno. Ademais, tem como direcionar a formação de parcerias público-privadas e a atuação empresarial tendentes ao alcance de etapas mais progressistas e inovadoras de produção. Assim, nessas circunstâncias, devem as empresas bem exercer sua função social, dando prevalência à dimensão humana, de modo a garantir a todos existência digna. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALQUÉRES, Hubert. O Novo Conhecimento. O desafio da educação é formar jovens para empregos que ainda não foram criados. In: Revista Cult, nº 246. São Paulo: Editora Bregantini, junho de 2019.
BANCO MUNDIAL – Índice de Capital Humano.  Disponível em: http://br.rfi.fr/brasil/20181011-brasil-esta-no-81-lugar-do-primeiro-indice-de-capital-humano-do-banco-mundial. Acesso em: 13 de novembro de 2020.
IBGE. Disponível em :< https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php>.
Acesso em: 3 dez.2020.
LIMA, Carolina Alves de Souza. Cidadania, Direitos Humanos e Educação: avanços, retrocessos e perspectivas para o século 21. São Paulo: Almedina, 2019.
PIDESC – PLANALTO. Disponível em< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm>. Acesso em: 07dez.2010.
SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. Trad. Daniel Moreira Miranda. São Paulo: Edipro, 2016.
UNESCO, 2015. Declaração de Incheon e o Marco de Ação da Educação Rumo a uma     Educação de Qualidade Inclusiva e Equitativa. Disponível em: <https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000233137_por>. Acesso em: 27abril2020.

* Pós-Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica - PUC-SP; Doutora em Direito do Trabalho e Sindical pela Universidade Degli Studi di Roma - LA SAPIENZA, com revalidação do diploma pela Universidade de São Paulo – USP; Especialista em Economia do Trabalho pela UNICAMP; Magistrada do Trabalho (9ª Região- PR. Aposentada); Professora Universitária em Cursos de Pós-Graduação. Autora de livro e artigos publicados em revistas e em diversas obras coletiva

Recital de Violão, com Gustavo Gorla*

Fomos brindados com um belíssimo recital, com o violonista apresentando uma sequência de músicas em vários ritmos, que mereceram aplausos (na modalidade remota) e vários comentários entusiasmados via chat

Veja e ouça sua apresentação:

> Clique aqui para abrir o vídeo

* Gustavo Gorla é violonista, compositor, produtor musical e estudante do curso de Licenciatura em Música pela Universidade Estadual de Londrina, na qual participa do projeto Cordas Brasileiras. Atua no cenário musical da cidade pela realização de apresentações, tanto solo quanto pelos projetos que participa como músico. Além de participar da organização de eventos culturais, também é idealizador do Musíca Londrina, projeto que busca trazer visibilidade para os músicos londrinenses à partir da produção de conteúdos de mídia.

Manoel de Barros, a simplicidade no convexo
Nilson Monteiro *

“Manoel é incomparável, está longe dos demais poetas. Só seria comparável no mundo a alguém como Picasso” (Fausto Wolff, jornalista e escritor)
     É difícil, para não dizer impossível, teorizar sobre Manoel de Barros. Sua poesia não se enquadra em movimentos como parnasianismo, modernismo, pós-modernismo, concretismo etc. ou em formas: sonetos, tercetos etc.
     Ou se sente ou não se sente.
     Ele é, sobretudo, original.
“A razão é a última coisa que deve entrar na poesia”.
Mas, ao mesmo tempo ele diz:
“Poesia tem que aguçar o seu olhar, a sua percepção de mundo”.
     Nascido em Cuiabá (MT), em 19 de dezembro de 1916, filho de um arameiro, que virou fazendeiro. Ainda criança, estudou em um internato de padres, em Campo Grande. Lá, começou a ler os escritos de Padre Vieira. 
     “Eu aprendera em Vieira que as imagens pintadas com palavras eram para se ver de ouvir”
     De sua infância, na fazenda Santa Cruz, retiro versos de “Entrada”, em “Poesia Completa”: 
Distâncias somavam a gente para menos. Nossa morada estava tão perto do abandono que dava até para a gente pegar nele... Meu avô abastecia a solidão... Eu conversava bobagens profundas com os sapos...
Seu primeiro livro, “Poemas concebidos em pecado”, foi publicado em 1937, numa tiragem de 20 exemplares, feita por amigos. Ele tinha 21 anos.
     Publicou mais de 20 livros. 
     Na década de 60, Millor Fernandes o descobriu aos 72 anos.
     Em seu “lugar de ser inútil”, como chamava seu escritório, escreveu, a lápis, mais de 200 caderninhos com seus poemas.
Tudo que não invento é verdade.
Em minha poesia, 90% é invenção e 10% é mentira.
     Drummond abdicou do epíteto de “maior poeta do Brasil” em favor de Manoel de Barros.
     Ele era, como versos que escreveu, um “Abridor de amanhecer”. Ou um “Esticador de horizontes”.  
     Morreu em 2014, aos 97 anos, tido por muitos como o “Guimarães Rosa da poesia brasileira”. Ambos usam a palavra “entortada”. Mas, Barros não gostava que colocassem data em sua existência.
     Sua alma já havia sido desbotada pela perda de dois filhos - Pedro morreu em 2013. João de Barros, de quem Manoel “copiou” versos na infância, faleceu, em decorrência de um acidente aéreo em 2007. Ele teve outra filha, Martha, que ilustrava seus poemas, embora considerasse isso “impossível”.
Poesia é a infância da língua... Meus desenhos verbais nada significam. Sobre o nada eu tenho profundidades.
A poesia se dirige à sensibilidade. Quero dar encantamento, mais nada.
Quero a coisificação dos humanos e a humanização das coisas.
A poesia se apaixona por mim.
     Ele dizia, em entrevistas, que era preciso despir o mundo literário de sua pompa, de sua grandeza, muitas vezes falsa. 
     Perguntado se gostaria de pertencer à Academia Brasileira de Letras, respondeu que não, “para não perder minha irresponsabilidade”.
     No entanto, em 2013, a Academia Sul-Mato-Grossense o considerou como Acadêmico Honorário, tornando-o imortal. Nem precisaria. 
     Ele teve um lastro intelectual muito forte, sofisticado, erudito, ao contrário do que muitos imaginam. Estudou e fez parte tanto de movimentos literários como políticos, conheceu parte do mundo, viveu na Bolívia, no Peru, França, Itália e Portugal e em Nova York, onde fez um curso de cinema e pintura no Museu de Arte Moderna. Leu muito: Garcia Lorca, T. S. Eliot, Ezra Pound e Stephen Spender, entre outros.
     Graduou-se em Direito, no Rio de Janeiro. Não era o seu mundo. Em sua primeira audiência pública, vomitou sobre o processo.
     Sobre entrevistas, era extremamente tímido e avesso. Uma vez, em uma emissora de rádio...
      Tentou, durante alguns anos, ser corretor de imóveis. A melhor coisa que lhe aconteceu foi, ao tentar vender um apartamento, conhecer a mineira Stella, com quem se casou em 1947. Foi sua companheira por toda a vida. 
     Voltou ao seu mundo – seu quintal no Pantanal – em sua fazenda, em Corumbá. Sua biografia vai do complexo ao singelo.
“A poética do abandono sem explicações é a maior contribuição de Manoel de Barros à poesia brasileira”. (Sérgio Medeiros, poeta e ensaísta)
     Um poeta que conversava com os sapos, pregos enferrujados ou com o firmamento. A conservar o encantamento que há na infância e na linguagem. Um poeta que buscava o criançamento das palavras. A sua magia. O seu sonho.
“...há um truque de construção imposto por um estilo do qual o poeta não consegue se livrar...” (Miguel Sanches, escritor, reitor da UEPG)
     É verdade. E quem disse que ele quis em algum momento se livrar?
     Ao contrário – o estilo era seu personagem principal, de mãos dadas com outros condimentos: natureza e pessoas. 
    “Eu sou muitas pessoas destroçadas”.
     Era a linguagem como personagem, como tanto buscou Wilson Bueno.
     Repetir é um dom do estilo.
Poesia é para descobrir.
     Barros inventava. Inventava e redescobria palavras e construções léxicas para transformá-las em poesia. Ele é de uma riqueza inesgotável em metáforas, neologismos, imagens e figuras literárias em geral. Ele descontrói as imagens, em linguagem absolutamente inovadora.
O esplendor da manhã não se abre com faca.
     Ele não precisava assinar seus textos. Gastaria papel. Era como o nosso Poty com sua arte.
“Na direção em que se constrói ou se encarta, a poesia de Manoel de Barros tem a máxima perfeição na poesia de Manoel de Barros”. (Antônio Houaiss, crítico literário e filólogo)
     O ritmo de Manoel de Barros é musical, a arte se inventa e vive nele em permanente estado de poesia.
“A poesia de Manoel de Barros pede silêncio e paciência. Depois de seu livro “O guardador de águas”, de 1989, ele parece não ter percebido que toda sua poética é realmente uma espécie de variação sobre si mesma, uma tautologia de elementos e de estruturas até a exaustão. Mas talvez seja preciso perceber também que a ideia de toda sua poesia é uma repetição. Como as variantes jazzísticas: base melódica e improvisações sobre esta base”. (Manoel Ricardo de Lima, poeta e professor de Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro)
“Manoel de Barros, figura singular e plural, é um dos maiores poetas brasileiros...” (Ênio Silveira, editor, dirigiu por muitos anos a Editora Civilização Brasileira)
     Toda sua obra é de uma vastidão humana impressionante. Pode sim ser comparada àquela que Guimarães Rosa nos legou.
     Ele, sobre os poetas:
O poeta não é obrigatoriamente um intelectual; mas é necessariamente um sensual.
Vi um lagarto lamber as pernas da manhã.
     Ele queria dar valor às coisas tidas aparentemente como inúteis. E nisso criava a imagem riqueza de sua obra:
O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa
era a imagem de um vidro mole ...
Passou um homem e disse:
Se chama enseada...
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro
Que fazia a volta atrás da casa.
Era agora uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem. 
     Ou, como dizia, entre outras coisas (ou poemas):
“para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
Que o esplendor da manhã não se abre com faca
O modo como as violetas preparam o dia para morrer
Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
Que um rio que flui entre dois jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre dois lagartos
Como pegar na voz de um peixe
Qual o lado da noite que umedece primeiro
Termino com o poema “O menino que carregava água na peneira”, que está em “Livros Infantis”. Poema que, além de beleza singular, o define como pessoa e poeta. 



* Jornalista e escritor, nascido em Presidente Bernardes (SP). Membro da Academia Paranaense de Letras desde 2014, ocupante da Cadeira 28 e sucessor de Helena Kolody e Belmiro Valverde. Atualmente, é diretor-tesoureiro e diretor de comunicação da APL. Graduado em Letras e Literatura Francesa pela Universidade Estadual de Londrina, trabalhou em inúmeros veículos estaduais e nacionais de comunicação. Tem 14 livros publicados: Simples (poesia), três de crônicas: “Curitiba vista por um pé vermelho”, “Pequena Casa de Jornal” e “As cidades e seus cúmplices”, um romance, “Mugido de Trem”, e o mais recente, “Nem tão Simples” (poesia), foi lançado neste ano.Distinções: Paraninfo de Comunicação Social, Universidade Estadual de Londrina (1981); Cidadão Honorário de Londrina (1999); Cidadão Honorário de Curitiba (2000); Cidadão Honorário do Paraná (2012), Comendador da Ordem do Pinheiro do Paraná (2015) e Título do Mérito Guarucaia, em Presidente Bernardes (SP) (2018)oi Membro do Conselho de Cultura do Estado do Paraná (1982 a 84), Membro Fundador e atual Membro Honorário da Academia de Letras, Ciências e Artes de Londrina (cadeira nº 27).

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Estamos reproduzindo as mensagens recebidas durante a reunião, sob a forma de chats:

From M.Gloria to Everyone: bom dia para todos. Bom dia Nilson e Cleusa 
From Mimi to Everyone: Bom dia, queridos amigos !
From Danusa Almeida to Everyone: Bom dia. Sou Danusa Almeida. Presidente da União Brasileira de Trovadores da Seção Campos dos Goytacazes-RJ.
From Maryune Zenti to Everyone: Bom dia!
From Rossana Spoladore to Everyone: bom dia!
From Andréa Motta to Everyone: Bom dia a todos
From Giuseppe Caonetto to Everyone: Bom dia. A ALAP (Paranavaí) presente, na pessoa de Giuseppe Caonetto. 
From Giuseppe Caonetto to Everyone: Vou deixar aqui um dos textos do Manoel de Barros que, a meu ver, diz muito sobre toda sua obra:
PALAVRAS
Veio me dizer que eu desestruturo a linguagem. Eu desestruturo a linguagem? Vejamos: eu estou bem sentado num lugar. Vem uma palavra e tira o lugar de debaixo de mim. Tira o lugar em que eu estava sentado. Eu não fazia nada para que a palavra me desalojasse daquele lugar. E eu nem atrapalhava a passagem de ninguém. Ao retirar de debaixo de mim o lugar, eu desaprumei. Ali só havia um grilo com sua flauta de couro. O grilo feridava o silêncio. Os moradores do lugar se queixavam do grilo. Veio uma palavra e retirou o grilo da flauta. Agora eu pergunto: quem desestruturou a linguagem? Fui eu ou foram as palavras? E o lugar que retiraram de debaixo de mim? Não era para terem retirado a mim do lugar? Foram as palavras pois que desestruturaram a linguagem. E não eu.
From Lucrecia Welter to Everyone: ALT e ALCA presentes, na pessoa da acadêmica Lucrecia Welter Ribeiro
From Maryune Zenti to Everyone: alguém conhece algum projeto em Londrina que envolva Direito e Arte?
From Andréa Motta to Everyone: União Brasileira de Trovadores - Seções Paraná e Curitiba, na pessoa de sua presidente - Andréa Motta
From Maria Inês Botelho to Everyone: Sou a acadêmica Maria Inês Botelho, membro da Academia de Letras, Artes e Ciências Centro-Norte do Paraná/sede em Apucarana e também de muitas outras academias e instituições análogas. Parabéns pela realização desta reunião com destaques muito interessantes. Feliz Natal! e Feliz Ano Novo! Que se supere esta situação atual na área da saúde. Que esta pandemia COVID-19 logo vá embora. Abraço acadêmica e amigo. Agradeço, imensamente, o convite enviado. Que possamos nos encontrar em 2021 de forma presencial.
From Etel Frota to Everyone: Muitos aplausos ao discurso do Dr. Sergio Alves Gomes! Verdadeiro alento!
From Lucrecia Welter to Everyone: Parabéns, Dr. Sergio Gomes!
From Adriano Alves Fiore to Everyone: Bom-dia a todo mundo
From Saulo to Everyone: Bom dia. Saulo de Tarso Pereira ACCUR - Curitiba.  
Parabéns ao Dr. Sergio. Reflexões obrigatórias pelo que estamos todos passando no mundo e, em especial em nosso País.
From Neusi Berbel to Everyone: Obrigada, Dr. Sergio, por suas palavras!
From Neusi Berbel to Everyone: Gustavo Gorla!!!!  Maravilha de composições!!!!  Parabéns! Obrigada!!!!
From Marco to Everyone: O Gustavo é maravilhosos!!
From Maryune Zenti to Everyone: Que evento legal! reflexões interessantes e Boa musica! 
From Lucrecia Welter to Everyone: Lindas músicas! Parabéns ao Gusavo!
From Mimi to Everyone: Falando em "nascimento", quero desejar que o nascimento de Jesus, que celebramos neste mês, tenha um significado especial para todos nós !
From Maryune Zenti to Everyone: 🙏
From Renata Regis Florisbelo to Everyone: Aguardando a palestra do amigo Nilson Monteiro. Parabéns à Academia de Letras, Ciências e Artes de Londrina pela iniciativa.
From User to Everyone: Será bom ouvir Nilson falando sobre Manoel de Barros!! 
From Luiz Fernando Cheres to Everyon :Aguardando suas palavras, amigo Nilson!
From Rossana Spoladore to Everyone: Nilson querido! Prazer enorme estar participando com você nesse momento lindo!
From Lucrecia Welter to Everyone: Viu Nilson, vc conseguiu trazer 50 pessoas a esse momento lindo de sua fala! Parabéns desde já, meu querido!
From User to Everyone: Nilson, sua emoção nos toma o coração!!
From Saulo to Everyone: Parabéns Dra. Dinaura. Muito profunda e atual suas reflexões sobre o trabalho e a dignidade humana e, a educação de qualidade. O Brasil em particular está mergulhado no mais profundo obscurantismo, negacionismo científico, pluralismo e, a a democracia na sua plenitude. 
From Lucrecia Welter to Everyone: Não há como não se emocionar ao ouvir falar da poesia de Manoel de Barros.  
From Jonas to Everyone: quem desejar poderá acompanhar o trabalho do Gustavo Gorla nas redes sociais, principalmente no youtube, Facebook e twitter. 
From Saulo to Everyone: As novas gerações terão um desafio gigantesco em proporcionar dignidade humana, trabalho e renda. Suas reflexões nos trazem a realidade dura e crua da vida de hoje.
From Jonas to Everyone: @gustavo.gorla no instagram
From Giuseppe Caonetto to Everyone: Grande Nilson. Sua emoção diz muito sobre poesia.
From Lucrecia Welter to Everyone: Nilson, querido, valem as lágrimas diante de tanta poesia! Viva Manoel de Barros! Viva Nilson Monteiro! Muitíssimo linda a sua palestra, estou engasgada de admiração.
From Danusa Almeida to Everyone:  Nossa... um sorteio! Adorei. Tomara que eu ganhe e seja um que eu não tenha, mas se for um que eu já tenha será também muita felicidade para mim...
From Maryune Zenti to Everyone: Pergunta para o Nilson: pode-se conhecer a verdade através da poesia?
From marco to Everyone: Nilson, meu amigo/irmão é muito bom ouvir, um poetaço falando de outro grande! Nos conduz pelas trilhas magicas!
From User to Everyone: Nilson, você fala com o coração, meu amigo!!
From Giuseppe Caonetto to Everyone: Nilson de Barros, você é fera.
From Neusi Berbel to Everyone: Nilson, que delícia te ouvir e a poesia de Manoel de Barros, através de você!!!
From Luci Collin to Everyone: PARABÉNS, Nilson! Muito importante falar do Manoel!!!!
From Julio Bahr to Everyone: Creio ter feito a melhor escolha para encerrarmos este ano: trazer o grande Nilson Monteiro para nos presentear com esta palestra e sua emoção
From Etel Frota to Everyone: A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá / mas não pode medir seus encantos. / A ciência não pode calcular quantos cavalos de força / existem / nos encantos de um sabiá. / Quem acumula muita informação perde o condão de / adivinhar: divinare. / Os sabiás divinam.
From Danusa Almeida to Everyone: Parabéns!👏👏👏⚘
From iPhone Zélia to Everyone: Parabéns! muito lindo o Manoel de Barros! muita emoção 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼!
From Etel Frota to Everyone:É também dos meus favoritos, Caonetto!
From Maryune Zenti to Everyone: O mundo  perdeu a sensibilidade porque perdeu o senso poético? A poesia habita nas almas simples assim como nas almas aprofundadas no estudo acadêmico?
From Mimi to Everyone:  Que beleza de palestra ! Cheia de emoção e de verdade, fazendo crescer nossa admiração por Manoel de Barros ! Parabéns, Nilson ! Obrigada !
From Etel Frota to Everyone: Aos amantes de Manoel de 
Barros, mais um pouco da sua poesia, inclusive na sua própria voz: https://www.mixcloud.com/Poemoda/manoel-de-barros/
Muito lindo, querido Nilson
From Cleusa Antonia to Everyone: Nós somos a natureza... Privilégio do Manoel perceber isso e escrever sobre isto de forma tão maravilhosa... 
From Lucrecia Welter to Everyone: Parabéns a todos que se apresentaram, que colocaram com tanto carinho em suas palavras, todos foram maravilhosos e gigantes nesta oportunidade! Parabéns cara presidente Ludmila!
From Giuseppe Caonetto to Everyone: Ouvir o Nilson falar de Manoel de Barros nos abre a quatro amores: Deus, Manoel de Barros, a poesia e o próprio Nilson.
From Adriano Alves Fiore to Everyone: Um Feliz Natal a todo mundo
From Danusa Almeida to Everyone: E o sorteio!!!
From Aline Caldas to Everyone: Lindo encontro! emocionante
From Lucrecia Welter to Everyone: Em nome da ALT e da ALCA, um Feliz Natal e excelente 2021 a todos, em especial aos poetas!
From Rossana Spoladore to Everyone: Parabéns, Nilson! excelente
From Lucrecia Welter to Everyone: Tudo foi maravilhoso neste domingo lindo!
From Etel Frota to Everyone: Pessoal, abro mão de participar do sorteio, por já ter O Livro das Ignorãças
From Maryune Zenti to Everyone: Obrigada! Feliz Natal!
From Danusa Almeida to Everyone: Feliz Natal e ótimo 2021 com muita saúde  para todos!
From Rossana Spoladore to Everyone: Gratidão pelo convite! Foi fantástico participar  novamente de uma reunião da Academia, mais de três décadas depois...

Extratos da nossa reunião em modalidade remota de 08/11/2020

Em tempos de pandemia, nossas reuniões estão sendo realizadas na modalidade remota. 
É muito fácil participar: informaremos a cada mês o link para o seu acesso. 
Venha participar conosco!

Nosso Mestre de Cerimônias Jonas Rodrigues de Matos conduziu a reunião

O Credo Acadêmico foi lido pelo Acadêmico Julio Bahr

Acadêmica Ludmila Kloczak

Caros confrades, confreiras e convidados presentes a essa reunião ao modo remoto. Boas-vindas a todos!
Este é o nono mês da pandemia. Nossas vidas foram desorganizadas. Novas soluções foram encontradas. Novas formas de trabalhar foram inventadas ou adaptadas. Vivemos sob o efeito de uma espécie de roleta-russa. Escaparei nesta semana ou neste mês? Ou não. Neste dia ou neste mês o vírus vai me encontrar? E depois, como reagirá meu organismo? Posso contar com sua capacidade de reação? Tenho imunidade suficiente para enfrenta-lo? Ou o que eu acreditava ser boa saúde, revelar-se-á um estado muito passageiro e poderei sucumbir. Cada um à sua maneira convive com a ameaça.  A maioria se cura. Os amigos celebram! Muitos, no entanto, perderam familiares, amigos, conhecidos. 
Novembro é o mês em que celebramos Todos os Santos com a esperança de sermos protegidos em nosso desamparo humano. Neste mês também cultuamos nossos mortos. Reavivamos a memória de sua existência. Reencontramos, de uma forma mais intensa, o que restou dentro de nós daqueles que amamos e perdemos. Despedimo-nos mais uma vez. 
É esta data que nos coloca frente a frente com a questão da finitude. Ao reavivarmos a lembrança daqueles que perdemos, nós nos deparamos com algo que é da natureza do viver. Sabemos que, em algum momento, nossa própria vitalidade escoará. Neste período pandêmico, nossa percepção da transitoriedade ficou exacerbada. Entretanto, essa percepção nos acompanha, pelo simples fato de existirmos. Como Bergson aponta, em sua obra Matéria e Memória, estamos submetidos ao fluxo contínuo do tempo a manifestar-se num processo de mudanças incessantes. Esta é a realidade na qual vivemos. O tempo está sempre a passar. Não podemos detê-lo. 
Dentre as inúmeras manifestações culturais, a sociedade humana cria rituais. Muitas vezes, nós nos desconectamos das razões pelas quais esses rituais existem e persistem. Toda história das civilizações que percorreram a Terra desde sempre, pontuam cerimônias fúnebres e culto aos mortos. Dentre as várias razões, talvez a mais importante, é a que faz os vivos se depararem com sua própria finitude. Nós nos deparamos com o Tempo. O tempo cronológico organiza a experiência humana. Oferece a condição para aproveitar nossa existência do melhor modo possível. Somos objetivos, organizados, produtivos numa escala pré-determinada pelo tempo sequenciado. Mas, também, nos domina. Somos inseridos numa relação de interdependência que dificulta ou, até, impede a expressão de outro movimento temporal inerente e necessário ao viver humano, que é a indeterminação do existir. Nossa vulnerabilidade, nossa subjetividade, nosso gesto criativo são estados emocionais em movimento. Esse movimento reflete nossa busca incessante do instante presente que nos preenche de alegrias. Mais do que isso, nos lança em estado de epifania. 
Chronos e Kairós se encontraram na pandemia de um modo inusitado. Ao se desorganizarem nossos padrões cronológicos, e o encontro com nosso sentimento de impotência e mal-estar, inúmeras manifestações revelaram um movimento de criação de espaços de grande potencial criativo e de solidariedade. A presença da morte quase palpável entre nós, não nos arrasta para o caos. Ao contrário, estimula a busca e a expressão da sensibilidade e da arte. 

Acadêmico Sergio Alves Gomes

Concedida a palavra ao Acadêmico e orador Sergio Alves Gomes, este saudou todos os presentes e agradeceu à Presidência pela oportunidade de poder usar da palavra, acrescentando tratar-se de mais uma reunião de celebração das Letras, das Ciências e das Artes, na qual conta-se com a presença da Literatura, da Música, de lições pedagógicas e reflexões filosóficas que confirmam o teor do credo acadêmico reiterado no início de todas as reuniões. Destacou que cada participante presente, ainda que em silêncio, se faz intérprete dos temas apresentados e que Interpretar é arte feita não apenas de um modo: interpreta-se pensando, falando, observando, lendo, ouvindo, sentindo, vendo, tocando instrumentos, atuando, dialogando... frisou o orador. Em seguida, desenvolveu uma reflexão sobre a tolerância, nos seguintes termos: 
Estamos no mês de novembro, rico de efemérides, pois, além das já mencionadas pela Presidente Ludmila Kloczak, temos também o aniversário da proclamação da República Federativa do Brasil, comemorado no próximo dia 15 e a celebração, no dia 16, do DIA INTERNACIONAL DA TOLERÂNCIA, instituído pela Conferência Geral da UNESCO, em sua 28º reunião de Paris, ocorrida entre 25 de outubro a 16 de novembro de 1995.1 
E por que se instituiu tal celebração? A resposta está no art. 6º da “Declaração de princípios sobre a tolerância”, aprovada na mesma Conferência, que diz: “A fim de mobilizar a opinião pública, de ressaltar os perigos da intolerância e de reafirmar nosso compromisso e nossa determinação de agir em favor do fomento da tolerância e da educação para a tolerância, nós proclamamos solenemente o dia 16 de novembro de cada ano como o Dia Internacional da Tolerância”2  
É oportuno e necessário refletir sobre a tolerância porque tem-se, nos dias atuais, a ocorrência frequente do seu oposto: intolerância. Atos de intolerância3 são noticiados, diariamente, pelo mundo afora. Multiplicam-se as condutas que revelam  racismo4, xenofobia5, fanatismo6, fundamentalismo, incompreensões e atitudes agressivas diante de diferentes crenças religiosas, convicções políticas ou filosóficas, costumes, culturas... São atos de recusa do racional e razoável reconhecimento da igual dignidade do “outro” como pessoa humana que compõem um cenário de alta agressividade dentro e fora de casa, ou seja, tanto no âmbito privado quanto nos espaços público e coletivo. Reiteradamente, a palavra e o diálogo são substituídos por golpes de agressão e pelo cometimento de crimes que, infelizmente, nem sempre são adequadamente punidos.
A predominar a intolerância, como negação do outro, por ser diferente7,  cria-se uma cultura de elogio à truculência e à morte. Por isso, faz-se urgente a construção de uma cultura em prol da vida, que seja biófila e não necrófila, lembrando-se aqui  a distinção entre “biofilia” e necrofilia  feita por Erich Fromm8.  Da cultura em prol da vida faz parte o cultivo da tolerância, tema sobre o qual muito refletiram célebres pensadores, como John Locke (1632-1704)9, Voltaire (1694-1778)10, John Stuart Mill (1806-1873)11 tendo por foco a intolerância então reinante, no âmbito religioso e na esfera política. Eram tempos da inquisição eclesiástica12 e do absolutismo real13. Tais pensadores defenderam a plena liberdade de consciência e de crença sem qualquer interferência coercitiva de quem quer que seja. E tais liberdades estão hoje incorporadas no elenco dos direitos fundamentais das constituições democráticas14. Dizia John Locke – defensor também da separação entre a esfera da política  e da religião, ou seja, entre Estado e Igreja15  – “Nenhum caminho que eu siga contra a minha consciência me conduzirá alguma vez à morada dos bem-aventurados[...]. Logo, é em vão que, sob o pretexto de salvar a alma dos seus súbditos, o magistrado os obriga a aderir à sua própria religião: se nela acreditam, virão espontaneamente; se não acreditam, ainda que venham, não deixarão de se perder”.16  
Mas o que é a tolerância?
Norberto Bobbio, respeitável filósofo do Direito e da Política, vê a tolerância em dois sentidos: um positivo e outro negativo: “Tolerância em sentido positivo se opõe à intolerância (religiosa, política, racial), ou seja, à indevida exclusão do diferente. Tolerância em sentido negativo se opõe à firmeza nos princípios, ou seja, à justa ou devida exclusão de tudo o que pode causar dano ao indivíduo ou à sociedade. Se as sociedades despóticas de todos os tempos e de nosso tempo sofrem de falta de tolerância em sentido positivo, as nossas sociedades democráticas e permissivas sofrem de excesso de tolerância em sentido negativo, de tolerância no sentido de deixar as coisas como estão, de não interferir, de não se escandalizar nem se indignar com mais nada”.17 
A mesma questão “O que é tolerância?” é claramente respondida pela “Declaração de princípios sobre a tolerância”, da UNESCO, em seu primeiro artigo: “Art. 1º, 1.1. A tolerância é o respeito, a aceitação e o apreço da riqueza e da diversidade das culturas de nosso mundo, de nossos modos de expressão e de nossas maneiras de exprimir nossa qualidade de seres humanos. É fomentada pelo conhecimento, a abertura de espírito, a comunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e de crença. A tolerância é a harmonia na diferença. Não só é um dever de ordem ética; é igualmente uma necessidade política e jurídica. A tolerância é uma virtude que torna a paz possível e contribui para substituir uma cultura de guerra por uma cultura de paz. 1.2. A tolerância não é concessão, condescendência, indulgência. A tolerância é, antes de tudo, uma atitude ativa fundada no reconhecimento dos direitos universais da pessoa humana e das liberdades fundamentais do outro. Em nenhum caso a tolerância poderia ser invocada para justificar lesões a esses valores fundamentais. A tolerância deve ser praticada pelos indivíduos, pelos grupos e pelo Estado.1.3. A tolerância é o sustentáculo dos direitos humanos, do pluralismo (inclusive o pluralismo cultural), da democracia e do Estado de Direito. Implica a rejeição do dogmatismo e do absolutismo e fortalece as normas enunciadas nos instrumentos internacionais relativos aos direitos humanos. 1.4.[...] praticar a tolerância não significa tolerar a injustiça social, nem renunciar às próprias convicções, nem fazer concessões a respeito. A prática da tolerância significa que toda pessoa tem a livre escolha de suas convicções e aceita que o outro desfrute da mesma liberdade. Significa aceitar o fato de que os seres humanos, que se caracterizam naturalmente pela diversidade de seu aspecto físico, de sua situação, de seu modo de expressar-se, de seus comportamentos e de seus valores, têm o direito de viver em paz e de ser tais como são.  Significa também que ninguém deve impor suas opiniões a outrem.”18    
O mesmo documento (art. 2º) estabelece os deveres do Estado na promoção da tolerância. Consta do texto (aqui parcialmente citado): “2.1. No âmbito do Estado a tolerância exige justiça e imparcialidade na legislação, na aplicação da lei e no exercício dos poderes judiciários e administrativo. Exige também que todos possam desfrutar de oportunidades econômicas e sociais sem nenhuma discriminação. A exclusão e a marginalização podem conduzir à frustração, à hostilidade e ao fanatismo. 2.3.[...] Sem a tolerância não pode haver paz e sem paz não pode haver nem desenvolvimento nem democracia”.19  
A importante declaração (art.4º, aqui parcialmente citada) apregoa a educação como meio indispensável para a superação da intolerância, ao dispor: “4.1. A Educação é o meio mais eficaz de prevenir a intolerância. A primeira etapa da educação para a tolerância consiste em ensinar aos indivíduos quais são os seus direitos e suas liberdades a fim de assegurar seu respeito e de incentivar a vontade de proteger os direitos e liberdades dos outros. 4.2. [...]As políticas e programas de educação devem contribuir para o desenvolvimento da compreensão, da solidariedade e da tolerância entre os indivíduos, entre os grupos étnicos, sociais, culturais, linguísticos e as nações.”20  
Diante de tais esclarecimentos, propostas e desafios nascem perguntas a exigirem reflexão: tendo-se em conta que o pluralismo religioso, filosófico e ideológico é realidade inconteste da complexa sociedade contemporânea e merece respeito e proteção no âmbito da Democracia, do Estado Democrático de Direito, conforme estabelecido na Constituição da República, como vai, no Brasil, o exercício da tolerância, na família, na escola, na empresa, na política, nas relações entre diferentes religiões, diferentes “visões de mundo”? Sabendo-se, conforme ensina o filósofo Foucault,21  que o poder permeia as diversas relações sociais, cabe perguntar: como estão, nestes mesmos ambientes e esferas, as relações entre poder e tolerância? O que se deve e o que se pode fazer em prol de mais tolerância positiva - como caminho para o entendimento e a paz no convívio com os outros e suas diferenças - e menos tolerância negativa para com a impunidade, a corrupção, o “jeitinho”22 que menospreza o princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei, deixando-se transparecer, às vezes, a ousadia de alguns indivíduos pretenderem até mesmo a “privatização” do poder político? A República e a Democracia veem a tolerância positiva entre os diferentes como uma virtude indispensável à paz e ao bem comum. Todavia, tanto a República quanto a Democracia, em razão de seus princípios fundamentais (arts. 1º a 4º da CF), não podem e não devem tolerar ações ofensivas às suas instituições republicanas e democráticas, isso porque por meio da Constituição estabelecem a origem popular do poder   tal poder só se legitima quando a serviço do “bem de todos” (CF, art.3º, IV) e não do bem de apenas alguns. “Todos” significa inclusão de todas as pessoas, independentemente de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Sem o respeito a tais princípios nada haveria a comemorar nos dias 15 e 16 de novembro. E aí se revela o momento e a razão de ser do Direito e de suas “fontes formais” (Constituição, pactos internacionais, leis infraconstitucionais) serem aplicados para frear os abusos e mau uso da própria tolerância que, em seu sentido positivo, jamais se confunde com aquele negativo manifestado pela indiferença, pelo preconceito que leva à omissão de deveres e condescendência com atos que ferem valores fundamentais ao convívio digno, pacífico e democrático.  
Somente quando bem compreendidos - e tal compreensão depende de educação que a possibilite - os significados e a importância da tolerância e da República é que as datas comemorativas que se aproximam (15 e 16 de novembro) ganham sentido e passam a merecer autêntica celebração. Um brinde à tolerância e à República Federativa do Brasil! Tim, tim! 


[1]  UNESCO. Declaração de Princípios sobre a tolerância. In: CARDOSO, Clodoaldo Meneguello. Tolerância e seus limites. São Paulo: Unesp, 2003 (Anexos, p.189 a 197).
[2] Idem, p.196.
[3] Cf. Foro Internacional sobre Intolerância (1997:Paris, França). A Intolerância. Academia Universal das Culturas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. Trata-se de obra que reúne 35 textos dos participantes do Fórum Internacional sobre a Intolerância, realizado na Sorbonne, em março de 1997.
[4] Cf. BITHENCOURT. Francisco. Racismos: Das Cruzadas ao Século XX. Para o referido autor, “a violência diária entre etnias continua a ser visível em diferentes partes do mundo”. E acrescenta que “é preciso ainda percorrer um longo caminho para cumprir o sonho da dignidade humana e da real implementação dos direitos humanos. (p.509). Cf. também WIEVIORKA, Michel. O Racismo, uma Introdução. São Paulo: Perspectiva, 2007.
[5] Cf. sobre tal tema ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Xenofobia: Medo e Rejeição ao Estrangeiro. São Paulo: Cortez, 2016.
[6] Cf. PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). Faces do Fanatismo. São Paulo: Contexto, 2004. A obra reúne textos de historiadores e pesquisadores de outras áreas sobre o fenômeno do fanatismo (fanatismo religioso, fanatismo racista, fanatismo político e fanatismo esportivo, segundo as quatro modalidades analisadas pelos autores).     
[7] Para o filósofo  MICHAEL WALZER, “a tolerância torna a diferença possível; a diferença torna a tolerância necessária”. Cf. Walzer. Michael. Da Tolerância. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. XII.
[8] Cf. FROMM, Erich. O Coração do Homem: seu gênio para o Bem e para o Mal, 6ªed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. (pg.39 e seguintes).
[9] Cf. LOCKE, John.  Carta Sobre A Tolerância. Lisboa: Edições 70, 1997. 
[10] Cf. VOLTAIRE. Tratado sobre a Tolerância. São Paulo: Edipro,2017.
[11] Cf. MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Petrópolis/RJ: Vozes, 1991.
[12] Cf. BETHENCOURT. Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália- séculos XV-XIX.
[13] Cf.ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Brasiliense, 2004.  LOPES, Marcos Antônio. O Absolutismo: política e sociedade na Europa Moderna. São Paulo: Brasiliense, 1996.
[14] A Constituição da República Federativa do Brasil estabelece no art. 5º, VI: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.
[15] Sobre tal temática cf. JACOBINA, Paulo Vasconcelos. Estado Laico, Povo Religioso: reflexões sobre liberdade religiosa e laicidade estatal. São Paulo: LTR, 2015. SOLER, Marcos. A Igreja e o Direito Brasileiro. São Paulo: LTR, 2010. CIFUENTES, Rafael  LLano.  Relações entre a Igreja e o Estado, 2ªed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. MILANI, Daniela Jorge. Igreja e Estado: relações, secularização, laicidade e o lugar da religião no espaço público. Curitiba: Juruá, 2015.
[16] LOCKE, John. Op. cit.  p. 105.
[17] BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus,1992. (p.211). 
[18] Unesco. Declaração de Princípios sobre a Tolerância.
[19] Idem.
[20] Unesco. Declaração de Princípio sobre a tolerância.
[21] Cf. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder, 8ªed. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
[22]Sobre este tema cf. ROSEN, Keith S. O Jeito na Cultura Jurídica Brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 12 e 13.  Diz o autor: “Vários autores têm observado que a diferença entre o direito escrito e o aplicado na prática é notoriamente grande na América Latina. A peculiaridade no Brasil é que essa prática de desvio das normas legais para alcançar o fim desejado elevou-se de um modo tal, que resultou na criação de uma instituição paralegal altamente cotada conhecida como “o jeito”. O jeito se tornou parte integrante da cultura jurídica do Brasil. Em muitas áreas do direito, o jeito é a regra; a norma jurídica formal, a exceção”. Espera-se que, mediante o esforço indispensável  de  fortalecimento das instituições democráticas,  tais constatações fiquem no passado e deixem de corresponder à triste realidade descrita pela referida obra.

"Sandra Delallo e os Clássicos do Piano"

Professora e exímia pianista, a convidada nos brindou com a interpretação de duas músicas de repertório clássico: "De Gradus ad Parnassum", de Claude Debussy e "Improviso Op. 66", de Chopin.
Ouça e veja a audição no vídeo:
https://www.youtube.com/watch?v=cK3lMM8Wjf0&feature=emb_logo

Sandra Secco Delallo é natural de Astorga PR.
Concluiu o curso de piano no Conservatório Musical Santa Cecília de Arapongas e manteve formação continuada com vários professores particulares.
Licenciada em Educação Artística pela UFPr.
Licenciada em Música pela UEL.
Pós graduada em performance do Piano pela UEL, apresentando-se como solista em repertório individual e concerto com orquestra.
Atua como professora de música desde 1974, nos vários níveis, tendo orientado alunos que se tornaram músicos e professores de música.
Organiza desde então apresentações musicais atuando como professora e intérprete.
Atualmente é professora na Escola Cantata e no Conservatório Musical de Londrina.

"A Difícil Arte do Desapego"
Acadêmica Neusi Berbel

Uma reflexão num contexto entre o Ter e o Ser numa sociedade tecnológica
Vivemos numa época de grandes mudanças, entre elas as tecnológicas. Tivemos que ir aprendendo a conviver com essas mudanças, para sobreviver e também buscar viver. Falo de minha vivência em geral e também a partir da minha profissão no magistério.
Não tenho a pretensão de tratar amplamente do tema aqui, tal como é desenvolvido em várias áreas, como na religião, na sociologia, na área médica e principalmente na psicologia, com a psicanálise, em que se pode até mesmo encontrar a Teoria do Apego e seu contrário. Vou, neste espaço, dar apenas um destaque para o tema! Ele poderá ser ampliado por especialistas no futuro!  
A minha geração, já no trabalho, viu a máquina de escrever substituída pelo computador, o mimeógrafo substituído pela impressora, os diapositivos ou pequenos slaides substituídos pelas transparências e depois pelos slaides como um programa de computador etc.   Tudo isso, primeiro incorporado pelas instituições, depois entrando em nossas casas. 
Ao mesmo tempo, a aquisição de livros, antes pela biblioteca, foi sendo incorporada pelos professores, que foram se deparando com mais e mais alternativas de abordagens para seus conteúdos e mais elementos explicativos pelas ciências complementares ou mesmo fundantes de sua área. Compramos livros e mais livros para nossa biblioteca particular ! Passamos a ter cada vez mais livros e outros materiais pensando que assim poderíamos vir a ser cada vez melhores professores.
Nessa mesma linha de pensamento, passamos a ter também cada vez mais títulos (de especialização, mestrado, doutorado, pós-doutorado) e ao mesmo tempo produzir e publicar cada vez mais livros, capítulos, artigos etc., para sermos reconhecidos como bons profissionais em nossa área!  E nos apegamos a isso!  
Muita coisa funcionou!!!  Crescemos em conhecimentos e elaborações numa subárea cada vez mais reduzida. Desenvolvemo-nos em algum sentido e contribuímos para o desenvolvimento de nossos alunos, também em algum sentido!!!
Aos poucos, o avanço da tecnologia foi-nos apresentando produtos maravilhosos e o telefone e a máquina fotográfica foram sendo substituídos pelo celular, cada vez menor e mais potente.  A comunicação ao celular foi facilitada (por áudio, por escrito ou por vídeo) e foi sendo acrescida ou substituída por mensagens e vídeos elaborados por outros!  De tão maravilhados com essas criações, as fomos acumulando em nossos aparelhos, que também foram sendo substituídos por outros com mais memória e recursos, mesmo que não soubéssemos como bem explorá-los!!!!
Fomos adquirindo!  Pela crença de que era o certo a fazer!  A influência do meio foi decisiva sobre nossas crenças, desejos e ações! O trecho do poema de Caetano Veloso (1) na música Dom de iludir, que diz “...Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, afirmação com a qual eu sempre concordei, foi sendo substituída por mim por “Cada um sabe a dor e a delícia de ter o que tem”, pois a sociedade para o consumo nos atingia/atinge de muitas maneiras e vamos nos apegando ao que consumimos!
No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (3)  encontramos, entre outros sentidos, que apegar significa “fazer aderir a,  colar, agarrar-se”. Para o termo apego, encontramos: “uma ligação afetuosa, afeição, estima. Dedicação constante ou excessiva a algo” (p.249). 
Ao buscarmos o termo desapego, encontramos no mesmo dicionário: “1- qualidade ou estado de quem revela desamor por alguém; 2- qualidade ou estado de quem demonstra indiferença, desinteresse, desprendimento pelas coisas ou certa coisa em particular, despego” (p.955).
Osho, conhecido Guru indiano, buscava explicar que nos agarramos a algo porque temos  medo de perdê-lo, de que amanhã não possamos mais ter aquilo que hoje temos.  E afirmava que “o amor é a única libertação do apego. Quando você ama tudo, não está preso a nada” (2).
Para Osho, o apego é a sede, o desejo ardente de possuir. É essa uma razão de grande parte de nossos sofrimentos e nossas frustrações.  Apegamo-nos aos seres humanos, aos seres viventes, aos bens (riqueza, posse, o ter, o saber),  a ideias, ideais, opiniões, crenças, concepções, ideologia, entre outros objetos. 
Dizia ainda o Guru: “Todas as nossas misérias e sofrimentos não são nada mais do que apego. Toda a nossa ignorância e escuridão é uma estranha combinação de mil e um apegos”. Se começarmos a desapegar-nos, uma tremenda libertação de energia acontecerá dentro de nós.
Eis que, de alguma maneira, vamos tendo que aprender a nos desapegar de nossos bens de todas as naturezas!  Não sem sofrimento, mas, porque, segundo Osho, “o desapego é certamente a essência do caminho”.
Não por desprezá-los, mas para viver de modo mais leve,  já que  naturalmente, ao chegarmos numa idade mais madura, precisamos cada vez mais de mais energia para poder carregar cada vez menos. 
Na grande maioria dos casos, fomos trocando casas mais espaçosas por apartamentos mais práticos e neles não há espaço para tantos livros que não usamos, principalmente após nos aposentarmos!
Mesmo distribuindo pelas bibliotecas que aceitam livros físicos - estes estão sendo substituídos pelos livros virtuais!!! Eu mesma já tenho dois deles!!! - deixando em sebos ou doando para outras instituições, o acúmulo de livros que nos são caros precisa ter destinação. Isso nos causa um novo conflito entre o ter e o ser!
Bom quando encontramos pessoas que possam aproveitar! Se tiverem condições de ler e se apropriarem do que leem!!! Tenho doado alguns  a estudantes matriculadas num curso de Pedagogia a distância, com a duração de 1 ano!!!
Não tem como não me preocupar com essa formação para o magistério, tendo em mente que o meu curso de Pedagogia foi de 4 anos presenciais, com complemento de um ano e meio,  que teve o acréscimo depois de uma especialização, depois mestrado, doutorado e pós-doutorado... Tudo isso sem a garantia e a convicção de conduzir com excelência salas de aula de formação de professores, que demandam permanente atualização, já que a sociedade está em constante mudança, e nela, as escolas e os alunos também,  dia a dia!!!!
Na hora de separar o que doar e o que guardar ainda por um tempo, o apego aparece, e forte !!!  Como me desfazer dos livros que escrevi ou no qual atuei com a minha organização, com capítulos, com prefácio etc.? Como me desprender das revistas em que tenho artigos publicados?  Tudo já foi publicizado, pois foi para isso escrito e publicado, mas tenho que ter uma cópia!!!
Quanto tempo empenhado! Quanta leitura! Quanta busca de respostas! Quantas escolhas de modo de vida por um modo de ser profissional? O quanto deixamos nossa casa, nossa vida pessoal e nossos filhos para essas elaborações e conquistas?
Pagamos caro o preço para ter o que temos, iludidos de que nos levam a ser o que queremos ser!
Então, o desapego, mesmo conscientemente reconhecido como necessário, é doloroso!  
Em alguns setores, mais difícil ainda, como no meu caso! Meu apego às minhas Aquarelas ainda é muito grande! Me apeguei a cada uma ao ponto de gostar de ad-mirá-las, mesmo em sua simplicidade!
O meu apego se mostra, neste momento, também em outro setor:  o das fotos e vídeos no meu celular! Entre as duas formas, contavam mais de sete mil !  Fotos e vídeos recebidos com muito carinho de amigos e familiares!  Guardados para recorrer a eles de vez em quando, por um tema, por uma saudade, por uma beleza contida, para um compartilhar oportuno!
E o pior!  O celular, objeto que deveria ser inanimado, não é!  Ele me dá um ultimato!  Não tem mais espaço para armazenagem! Não insista !  Como se dissesse: Ou eles ou eu não funciono mais!!!  E o que faço com isso? 
Vamos lá! Vamos aprender! Vamos buscar algumas fotos para guardar no computador e alguns vídeos mais expressivos!  Puro apego!  Curiosamente, o pensamento de OSHO, se aplica aqui com muita clareza! Se eu começar a desprender-me das fotos e vídeos, uma tremenda liberação de energia (espaço de armazenagem, no caso do  celular !) acontecerá!  
Então...  é inevitável exercitar o desapego, cortando na pele !  É cruel ! 
Mais uma vez: “Cada um sabe a dor e a delícia de ter o que tem” e será que ter, o faz ser o que é?
Uma coisa é certa: o desapego requer esforço!  É preciso tempo! É preciso também um critério para as escolhas!  A beleza da fotografia/ das imagens?  O texto/o roteiro? As cores? O remetente? Os autores? Os sons ...     Qual? 
Seja lá qual ou quais critérios, a escolha será inevitável! Por isso, mesmo nesses campos aqui exemplificados, de ordem material, é muito difícil exercer a Arte do desapego! 
Podemos então imaginar em outros, quando o foco de apego sejam ideais, crenças ou seres humanos!
Vamos refletir!  
_____________________________
(1) Veloso, Caetano. Música Dom de Iludir. Capturado em https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/44719/, em 08/10/2020.
(2) http://portaldobudismo.com/2014/05/30/osho-o desapego/ Capturado em 3/10/20 de https://medium.com/@patycalazans/o-desapego-lindo-texto-do-mestre-osho-a41d16e33842
(3) Houhaiss, Antonio (1915-1999) e Villar, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.  Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

"Maura Lopes Cançado - Literatura e Loucura"
Celia Musilli *

No fim da década de 1950, Maura Lopes Cançado, internada num hospício, escreve um diário. Durante cinco meses, de outubro de 1959 a março de 1960, dedica-se a relatar tudo o que acontece ao seu redor, misturando a dor da sua condição psicótica a descrições do ambiente lúgubre em que vivia: “O hospício é árido e atentamente acordado, em cada canto, olhos cor-de-rosa e frios, espiam sem piscar.”

A referência aos olhos é uma alusão ao ambiente vigiado do Hospital Gustavo Riedel, no bairro do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, onde os portões eram trancados, os muros altos, todos cumpriam uma rotina rígida e as internas eram controladas por tratamentos que incluíam os eletrochoques, além de doses maciças de medicamentos. O diário, publicado pela primeira vez em 1965, pela José Olympio, recebeu um título curioso: Hospício é Deus. Ao escrevê-lo, Maura saltou o muro do manicômio e ganhou reconhecimento como autora.
A imagem dos olhos – ou do olhar – trespassa o livro como símbolo da vigilância institucional e também do testemunho da autora. Ver e contar torna-se neste período sua principal atividade; ela transforma a escrita num estímulo cotidiano e, ao mesmo tempo, num instrumento de denúncia. A situação de ser vista e vigiada, assim como de olhar e relatar, articula-se com o título do seu segundo livro: O Sofredor do Ver, publicado em 1968, também pela José Olympio, e que só teve uma segunda publicação em 2011, pela Confraria dos Bibliófilos do Brasil, reunindo doze contos, sendo que alguns remetem a situações e personagens do manicômio.
Hospício é Deus, seu livro mais conhecido, mostra a intensidade da sua escrita, aliando a angústia a um grande potencial literário. Trata-se da força expressiva de quem faz outra leitura do mundo, plasmada por uma percepção dilatada das coisas mas sem perder a lucidez, embora no diário faça uma auto-representação da louca, dando voz a si mesma e a suas companheiras de hospício. O livro é um documento de época que mostra o tratamento dispensado à loucura, uma situação trágica tendo em vista os tratamentos dolorosos e até desumanos. A autora faz uma crítica feroz ao sistema psiquiátrico em vigor no período de seus internamentos que foram muitos, já que passou a vida entrando e saindo de manicômios até falecer em 1993, aos 63 anos.
O interessante na sua obra é que não se trata apenas de “escrita de denúncia,” abordada em muitas pesquisas, mas da expressão de  ideias num plano simbólico que se articula como uma espécie de “inconsciente da obra.” Maura utiliza muitas imagens e metáforas, recursos ainda mais presentes em seu livro de contos O Sofredor do Ver, que considero sua grande obra, com uma linguagem que se distancia dos lugares comuns. Não à toa o crítico Assis Brasil, um dos poucos - senão o único crítico renomado a analisar com mais profundidade seu livro de contos - a considerava uma revelação literária dos anos 50/60. No prefácio ao livro A Nova Literatura – O conto III, ele elenca uma série de autores que considerava importantes, Maura está entre eles. Ainda assim, é pouco conhecida, pouco estudada, o número de teses e dissertações sobre sua obra é pequeno e a crítica praticamente a ignora.
Comparo seus livros a caleidoscópios, repletos de imagens literárias que descobrimos girando de um lado a outro, sendo possível muitas leituras. Para fazer esta abordagem, o surrealismo torna-se um parâmetro interessante, não para classificar Maura como “autora surrealista”, mas para perceber em sua escrita traços surrealistas que em algumas pesquisas são identificados apenas de passagem, sem o aprofundamento ou uma explicação capaz de distinguir essa característica. Na sua obra encontrei o encantamento da linguagem surreal, aquela que tira faíscas das palavras, iluminando novos sentidos por aproximações inusitadas como nos títulos de seus livros: Hospício é Deus e O Sofredor do Ver. Trata-se de literatura sofisticada, às vezes complexa ou quase inescrutável a ser lida com todos os sentidos, buscando na recepção uma pulsação que acompanhe sua criação. 
Maura às vezes é de tirar o fôlego. Um caminho é tomar sua escrita pela ótica da eficácia estética, porque não basta ser louco, como muitos apontam como sua característica relevante, tem que escrever bem, fazer literatura, e isso ela fez magistralmente. Sua obra às vezes requer um cruzamento com seus dados biográficos, onde se encontram alguns de seus motes de criação: ela transformava colegas de manicômio em personagens de contos, ficcionalizava suas histórias. Não dá para ignorar este aspecto de imbricamento, alguns de seus contos são melhor compreendidos a partir de seu diário porque há uma transposição de situações de uma obra realista para sua obra ficcional. No entanto, embora o estigma da loucura pese muito sobre Maura, sua obra ainda requer interpretações não sob um ponto de vista psicopatológico, mas literário. Há muito a se descobrir e dizer sobre ela.

UMA AUTORA VERSÁTIL 
Maura Lopes Cançado escreveu em diversos gêneros, é autora de poemas, contos e também do diário que se caracteriza como “escrita de si.” Dividiu espaço com intelectuais como José Louzeiro, Carlos Heitor Cony, Assis Brasil e Ferreira Gullar ao publicar alguns de seus contos noSuplemento Dominical do Jornal do Brasil – SDJB – considerado um caderno literário de vanguarda entre os anos 50 e 60. Até por isso, em alguns momentos seu diário apresenta traços jornalísticos como a criação de manchetes para dar conta do cotidiano do hospício. Ela escreve em letras garrafais: “EXTRA! EXTRA!  O CRIME DA GRAVATA NOVA!”, mostrando não só verve de repórter como uma boa dose de humor. Apesar do sofrimento, encontra-se em seus textos uma versão de humor negro, caro a alguns surrealistas. Ela também se valia da ligação que tinha com o Jornal do Brasil – onde publicava contos, mesmo estando internada – e da amizade com jornalistas como condição que lhe conferia prestígio, como autora era vista de outro modo no manicômio, gozava de um status e isso, às vezes, transparece como motivo de orgulho em seus textos. Foi através da condição de autora que adquiriu uma nova identidade, não sendo “apenas um prefixo no peito do uniforme” como descreve em Hospício é Deus os internos que formavam a massa da loucura.  A literatura a colocava em outro plano, remetendo ao conceito de arte como “organização da experiência”, valorizado por críticos como o norte-americano I.A. Irving e  Antonio Cândido.
Em matéria de gêneros Maura é eclética, escreveu como quem mexe no dial de um rádio. Os amigos jornalistas frequentemente são citados no seu diário para formular críticas ou como motivo de orgulho por contar com pessoas consideradas influentes, dependendo do momento ou da circunstância, da cumplicidade ou da decepção. Quando a situação ficava difícil, ela chamava Reynaldo Jardim – editor do Suplemento Dominical e um dos primeiros a valorizar sua obra – ou queria falar com Ferreira Gullar, Alice Barroso e outros conhecidos para quem telefonava.
Já o livro de contos que se encontra esgotado, pode ser considerado uma raridade que revela muito sobre Maura. Um dos seus contos mais conhecidos, “No quadrado de Joana”, traz uma personagem catatônica, cuja obsessão é andar em linha reta no pátio do hospício. Outro conto, “Introdução a Alda”, é dedicado a uma colega do manicômio cujo verdadeiro nome era Auda. Este conto parece uma espécie de “bula” que os médicos deveriam conhecer para  desvendar as emoções  delicadas de uma psicótica, coisa difícil de acontecer no hospital em que Maura vivia. Já “Espiral Ascendente” traz uma experiência real: a autora ao encenar uma peça de teatro  no papel de Ofélia – a personagem de Shakespeare - numa apresentação ao ar livre, tirou a roupa, postou-se no alto de uma pedra, ameaçando jogar-se de uma cachoeira, situação que bem lembra o Teatro da Crueldade de Antonin Artaud que pretendia implodir os limites entre o real e o simbólico em busca de encenações autênticas  e sem fronteiras que aproximassem arte e vida. Maura se deu a este “luxo” cênico, num momento tão complexo quanto arriscado que acabou transportando para a  literatura.

A INCLUSÃO DA LOUCURA  
Na História da Loucura, Michel Foucault mostra que o estigma da doença tornou a insanidade um campo fechado que, ao longo dos séculos, fascinou e amedrontou muita gente. A loucura seria uma experiência próxima da morte, capaz de oferecer uma peculiar liberdade que também nos instiga, nos espreita e nos faz livres, justamente por transpor os limites da compreensão racional. Maura é um dos tantos exemplos de escritores, filósofos e poetas que tiveram suas obras atravessadas pela "noite da loucura". Mas há estruturas e imagens nos seus textos que nos colocam diretamente diante dessa experiência, uma construção artística que oscila entre a racionalidade e seu transbordamento. Uma relação importante que se pode fazer a partir do título de seu diário Hospício é Deus é interpretá-lo, em seu teor provocativo, como um título que reúne dois grandes temas filosóficos: Deus e a loucura que nos proporcionam, à primeira vista, uma ideia de incompreensão e complexidade, um abismo que se abre diante da grandiosidade. Uma imensidão que não é só seu enigma como sua explicação.
A simbologia na obra de Maura é muito forte, assim como o atrito das palavras,  combustão que pode nos levar a uma abordagem surrealista. Fora isso há o aspecto da vigilância porque Maura era vigiada e, de certa forma, também vigiava o hospício, fazendo dele um tema constante. Comparo sua escrita à linguagem cinematográfica, sua experiência a um reality show, como se Maura ligasse no hospício uma câmera 24 horas, vendo e relatando tudo. Ela mesma diz muitas vezes que está inserida num contexto, num ambiente “que só o cinema seria capaz de mostrar”. Isso revela muito da sua obsessão pela linguagem perfeita, que capte a realidade em detalhes. Além disso, revela nos contos uma forma de olhar bastante original, o verbo “ver” permeia toda sua obra, tanto que escreveu um livro e um conto homônimo intitulados “O Sofredor do Ver”.
Num trecho de Hospício é Deus, ela descreve a loucura fundida com a condição feminina: "Nós, mulheres despojadas, sem ontem nem amanhã, tão livres que nos despimos quando queremos. Ou rasgamos os vestidos (o que dá ainda um certo prazer). Ou mordemos. Ou cantamos, alto e reto, quando tudo parece tragado, perdido. [...] Nós, mulheres soltas, que rimos doidas por trás das grades - em excesso de liberdade".  Nos seus escritos, o "ser mulher" está próximo de uma região de loucura, onde é possível rir plenamente, existir sem tempo, ir em frente apesar da flagrante contradição de ser prisioneira, resistir livre, no prazer e na sensualidade, ainda que esteja apartada do mundo. Acredito que para Maura, a literatura é realmente a representação desta liberdade, o leitmotiv que a fez manter-se viva.
No diário, ela também cita o Dr. A, um psiquiatra negro que foi seu grande amor no  hospício, assim como fala do pai – com quem manteve uma relação meio edipiana – do ex-marido, do ex-sogro, do filho Cesarion, mas os homens figuram mais como dados biográficos, pois ela mantém sua atenção sobre personagens femininas. Como mulher, se expressa de forma muito sensual no diário, era vaidosa, narcisista, maquiava-se bem, exibia as pernas, gostava de ser vista e admirada, colocando-se de “forma artística” no manicômio, a ponto de dançar no telhado. Mas a condição feminina estava introjetada nela sem que isso se relacione a uma busca de emancipação, era naturalmente independente e rebelde. Numa entrevista ao jornalista João da Penha, da revista Escrita,  nos anos 70, Maura fala dos gêneros sem fazer diferença entre homens e mulheres, sem arroubos feministas. O que não deixa de ser um feminismo exemplar, uma igualdade já assimilada que nem sequer observa as diferenças. Nesta entrevista, ela diz que não se expressa como mulher, mas como ser humano.
É importante ressaltar que Maura, além de autora, foi uma pessoa criativa que deu margem também a muita ficção em torno da sua vida, como no caso de um episódio comentado pelo jornalista e escritor José Louzeiro num artigo que relaciona a loucura de Maura a um incidente com um avião na juventude. Maura, quando jovem, fez curso para tirar o brevê e ganhou da mãe um avião Paulistinha, um luxo do qual podia usufruir porque era filha de um fazendeiro muito rico de Minas. Este incidente – o avião teve que fazer um pouso de emergência e causou alguns estragos numa cidadezinha do interior – chegou a ser visto como sintoma de loucura, de um surto, mas a própria Maura diz no diário que quem pilotava o avião naquele dia era um amigo, não ela, que era apenas passageira.  Não é possível defender nenhuma versão sobre fatos de sua vida como verdade absoluta, porque a vida de Maura foi bastante fragmentada e há muitas informações desencontradas sobre ela. Mas é possível observar que é frequente alimentarem-se fantasias em torno da vida dos loucos, a lenda é sempre mais fascinante que a realidade, mas tendo em vista seu próprio relato sobre o incidente com o avião, creio que se deva levar em conta também o que ela diz  e não só o que dizem sobre ela, embora a Maura “escritora e louca” seja uma personagem e tanto. Também pesava sobre ela um homicídio: matou uma colega de quarto em uma clínica psiquiátrica. No julgamento foi considerada inimputável por causa da doença, por haver cometido o crime durante um surto.
Acredito que a primeira obrigação de quem analisa a obra de um louco seja lhe devolver a palavra, o direito de se expressar com legitimidade. No caso de Maura há um documento que pode ajudar a fazer prevalecer sua palavra: o diário Hospício é Deus, considerado um relato lúcido. Devolver-lhe a palavra é o que venho tentando desde que encontrei o primeiro artigo sobre ela em 2009 e o desdobrei numa pesquisa que não abarca tudo o que se pode ainda dizer sobre sua obra. A loucura como a literatura são territórios sem fim.

* Jornalista, cronista, poeta, autora dos livros "Londrina Puxa o Fio da Memória" (editora Letra d'Água/ 2004) de memórias de Londrina; "Sensível  Desafio", poesia ( Editora Atrito Art/ 2006) e "Todas as Mulheres  em Mim", poesia ( Coleção  Tríade/ editoras Atrito Art e Kan/ 2010). 
Tem textos  publicados  em coletâneas, jornais  e revistas literárias  do Brasil  e Portugal.  
Atualmente  é editora de Cultura  da Folha de Londrina.