Escorreita na memória estão as lembranças que afagam e recobram o cheiro da infância. Tenho presente a imagem da minha avó que morava no sítio. Final do ano vinham os parentes de longe. Reuniam-se as filhas, os genros, os netos e as netas da vó Catarina. A casa enchia-se de gente e de alegria. Meu tio, Francisco – o Chiquinho –, sempre chegava acompanhado de algumas caixas de uvas, aquelas caixas de madeira. Todos se deliciavam.
Num daqueles finais de ano, tio Chiquinho, meu pai, vários primos e eu fomos ao sítio do japonês lá Colônia Novo Mundo. Akira, era um ousado empreendedor. Dizia ele, já nos anos 80, que, apesar do calor, era possível cultivar uvas de qualidade na nossa região. Chegando lá, para nossa surpresa, além de um lindo parreiral, cachos generosos e uvas doces, Akira convidou-nos para conhecer sua pequena vinícola. Sim, ele também acreditava na possibilidade de produzir bons vinhos. Abriu a porta de uma velha tulha e lá no fundo, temperatura amena e pouca luz, alguns tonéis convertendo o precioso líquido. Eduardo Galeano conta que um homem dos vinhedos do Uruguai, antes de morrer, sussurrou um segredo aos familiares: “A uva é feita de vinho”.
Passados alguns anos, tio Chiquinho assumiu a boleia de um caminhão e fez da estrada sua morada até a aposentadoria. Percorreu o Brasil, ultrapassou as fronteiras da distância. Quando retornava de suas viagens sempre trazia muitas estórias que ouvíamos atentos ao redor da mesa. Numa dessas odisseias, além das estórias, trouxe também algumas caixas de uvas uruguaias. Disse que havia sido presente de um “camionero”, a quem havia ajudado na estrada. Essas uvas, como as do Akira, ficaram para sempre na minha memória olfativa e afetiva.
Hoje, em sua chácara, tio Chiquinho não consome os dias no merecido descanso que a idade lhe confere. Ao contrário, admirável no cuidado e no cultivo, mantém um parreiral de uvas. Ele sempre soube cultivar uvas e, igualmente, as amizades colhidas no parreiral da vida. Nunca deixou de brindar a família e os amigos com uvas transformadas em vinhos e em boas conversas.
De fato, se as uvas são feitas de vinho, Galeano insiste em dizer que “talvez a gente seja as palavras que contam o que a gente é”. Creio que ele tenha razão. Somos o que carregamos e guardamos em nós, sobretudo os afetos armazenados nos esconderijos da memória e que partilhamos na forma de palavras. Somos como as uvas do tio Chiquinho transmutadas silenciosamente na pequena vinícola do Akira. Somos, ao mesmo tempo, vinho e uva. E depende de nós conferir sabor à vida.
Academico Clodomiro
José Bannwart Júnior
Professor Associado do Departamento de Filosofia
Universidade Estadual de Londrina
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