Em tempos de pandemia, nossas reuniões estão sendo realizadas na modalidade remota.
É muito fácil participar: informaremos a cada mês o link para o seu acesso.
Venha participar conosco!
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Nosso Mestre de Cerimônias Jonas Rodrigues de Matos conduziu a reunião
O Credo Acadêmico foi lido pelo Acadêmico Julio Bahr
Acadêmica Ludmila Kloczak
Caros confrades, confreiras e convidados presentes a essa reunião ao modo remoto. Boas-vindas a todos!
Este é o nono mês da pandemia. Nossas vidas foram desorganizadas. Novas soluções foram encontradas. Novas formas de trabalhar foram inventadas ou adaptadas. Vivemos sob o efeito de uma espécie de roleta-russa. Escaparei nesta semana ou neste mês? Ou não. Neste dia ou neste mês o vírus vai me encontrar? E depois, como reagirá meu organismo? Posso contar com sua capacidade de reação? Tenho imunidade suficiente para enfrenta-lo? Ou o que eu acreditava ser boa saúde, revelar-se-á um estado muito passageiro e poderei sucumbir. Cada um à sua maneira convive com a ameaça. A maioria se cura. Os amigos celebram! Muitos, no entanto, perderam familiares, amigos, conhecidos.
Novembro é o mês em que celebramos Todos os Santos com a esperança de sermos protegidos em nosso desamparo humano. Neste mês também cultuamos nossos mortos. Reavivamos a memória de sua existência. Reencontramos, de uma forma mais intensa, o que restou dentro de nós daqueles que amamos e perdemos. Despedimo-nos mais uma vez.
É esta data que nos coloca frente a frente com a questão da finitude. Ao reavivarmos a lembrança daqueles que perdemos, nós nos deparamos com algo que é da natureza do viver. Sabemos que, em algum momento, nossa própria vitalidade escoará. Neste período pandêmico, nossa percepção da transitoriedade ficou exacerbada. Entretanto, essa percepção nos acompanha, pelo simples fato de existirmos. Como Bergson aponta, em sua obra Matéria e Memória, estamos submetidos ao fluxo contínuo do tempo a manifestar-se num processo de mudanças incessantes. Esta é a realidade na qual vivemos. O tempo está sempre a passar. Não podemos detê-lo.
Dentre as inúmeras manifestações culturais, a sociedade humana cria rituais. Muitas vezes, nós nos desconectamos das razões pelas quais esses rituais existem e persistem. Toda história das civilizações que percorreram a Terra desde sempre, pontuam cerimônias fúnebres e culto aos mortos. Dentre as várias razões, talvez a mais importante, é a que faz os vivos se depararem com sua própria finitude. Nós nos deparamos com o Tempo. O tempo cronológico organiza a experiência humana. Oferece a condição para aproveitar nossa existência do melhor modo possível. Somos objetivos, organizados, produtivos numa escala pré-determinada pelo tempo sequenciado. Mas, também, nos domina. Somos inseridos numa relação de interdependência que dificulta ou, até, impede a expressão de outro movimento temporal inerente e necessário ao viver humano, que é a indeterminação do existir. Nossa vulnerabilidade, nossa subjetividade, nosso gesto criativo são estados emocionais em movimento. Esse movimento reflete nossa busca incessante do instante presente que nos preenche de alegrias. Mais do que isso, nos lança em estado de epifania.
Chronos e Kairós se encontraram na pandemia de um modo inusitado. Ao se desorganizarem nossos padrões cronológicos, e o encontro com nosso sentimento de impotência e mal-estar, inúmeras manifestações revelaram um movimento de criação de espaços de grande potencial criativo e de solidariedade. A presença da morte quase palpável entre nós, não nos arrasta para o caos. Ao contrário, estimula a busca e a expressão da sensibilidade e da arte.
Acadêmico Sergio Alves Gomes
Concedida a palavra ao Acadêmico e orador Sergio Alves Gomes, este saudou todos os presentes e agradeceu à Presidência pela oportunidade de poder usar da palavra, acrescentando tratar-se de mais uma reunião de celebração das Letras, das Ciências e das Artes, na qual conta-se com a presença da Literatura, da Música, de lições pedagógicas e reflexões filosóficas que confirmam o teor do credo acadêmico reiterado no início de todas as reuniões. Destacou que cada participante presente, ainda que em silêncio, se faz intérprete dos temas apresentados e que Interpretar é arte feita não apenas de um modo: interpreta-se pensando, falando, observando, lendo, ouvindo, sentindo, vendo, tocando instrumentos, atuando, dialogando... frisou o orador. Em seguida, desenvolveu uma reflexão sobre a tolerância, nos seguintes termos:
Estamos no mês de novembro, rico de efemérides, pois, além das já mencionadas pela Presidente Ludmila Kloczak, temos também o aniversário da proclamação da República Federativa do Brasil, comemorado no próximo dia 15 e a celebração, no dia 16, do DIA INTERNACIONAL DA TOLERÂNCIA, instituído pela Conferência Geral da UNESCO, em sua 28º reunião de Paris, ocorrida entre 25 de outubro a 16 de novembro de 1995.1
E por que se instituiu tal celebração? A resposta está no art. 6º da “Declaração de princípios sobre a tolerância”, aprovada na mesma Conferência, que diz: “A fim de mobilizar a opinião pública, de ressaltar os perigos da intolerância e de reafirmar nosso compromisso e nossa determinação de agir em favor do fomento da tolerância e da educação para a tolerância, nós proclamamos solenemente o dia 16 de novembro de cada ano como o Dia Internacional da Tolerância”2
É oportuno e necessário refletir sobre a tolerância porque tem-se, nos dias atuais, a ocorrência frequente do seu oposto: intolerância. Atos de intolerância3 são noticiados, diariamente, pelo mundo afora. Multiplicam-se as condutas que revelam racismo4, xenofobia5, fanatismo6, fundamentalismo, incompreensões e atitudes agressivas diante de diferentes crenças religiosas, convicções políticas ou filosóficas, costumes, culturas... São atos de recusa do racional e razoável reconhecimento da igual dignidade do “outro” como pessoa humana que compõem um cenário de alta agressividade dentro e fora de casa, ou seja, tanto no âmbito privado quanto nos espaços público e coletivo. Reiteradamente, a palavra e o diálogo são substituídos por golpes de agressão e pelo cometimento de crimes que, infelizmente, nem sempre são adequadamente punidos.
A predominar a intolerância, como negação do outro, por ser diferente7, cria-se uma cultura de elogio à truculência e à morte. Por isso, faz-se urgente a construção de uma cultura em prol da vida, que seja biófila e não necrófila, lembrando-se aqui a distinção entre “biofilia” e necrofilia feita por Erich Fromm8. Da cultura em prol da vida faz parte o cultivo da tolerância, tema sobre o qual muito refletiram célebres pensadores, como John Locke (1632-1704)9, Voltaire (1694-1778)10, John Stuart Mill (1806-1873)11 tendo por foco a intolerância então reinante, no âmbito religioso e na esfera política. Eram tempos da inquisição eclesiástica12 e do absolutismo real13. Tais pensadores defenderam a plena liberdade de consciência e de crença sem qualquer interferência coercitiva de quem quer que seja. E tais liberdades estão hoje incorporadas no elenco dos direitos fundamentais das constituições democráticas14. Dizia John Locke – defensor também da separação entre a esfera da política e da religião, ou seja, entre Estado e Igreja15 – “Nenhum caminho que eu siga contra a minha consciência me conduzirá alguma vez à morada dos bem-aventurados[...]. Logo, é em vão que, sob o pretexto de salvar a alma dos seus súbditos, o magistrado os obriga a aderir à sua própria religião: se nela acreditam, virão espontaneamente; se não acreditam, ainda que venham, não deixarão de se perder”.16
Mas o que é a tolerância?
Norberto Bobbio, respeitável filósofo do Direito e da Política, vê a tolerância em dois sentidos: um positivo e outro negativo: “Tolerância em sentido positivo se opõe à intolerância (religiosa, política, racial), ou seja, à indevida exclusão do diferente. Tolerância em sentido negativo se opõe à firmeza nos princípios, ou seja, à justa ou devida exclusão de tudo o que pode causar dano ao indivíduo ou à sociedade. Se as sociedades despóticas de todos os tempos e de nosso tempo sofrem de falta de tolerância em sentido positivo, as nossas sociedades democráticas e permissivas sofrem de excesso de tolerância em sentido negativo, de tolerância no sentido de deixar as coisas como estão, de não interferir, de não se escandalizar nem se indignar com mais nada”.17
A mesma questão “O que é tolerância?” é claramente respondida pela “Declaração de princípios sobre a tolerância”, da UNESCO, em seu primeiro artigo: “Art. 1º, 1.1. A tolerância é o respeito, a aceitação e o apreço da riqueza e da diversidade das culturas de nosso mundo, de nossos modos de expressão e de nossas maneiras de exprimir nossa qualidade de seres humanos. É fomentada pelo conhecimento, a abertura de espírito, a comunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e de crença. A tolerância é a harmonia na diferença. Não só é um dever de ordem ética; é igualmente uma necessidade política e jurídica. A tolerância é uma virtude que torna a paz possível e contribui para substituir uma cultura de guerra por uma cultura de paz. 1.2. A tolerância não é concessão, condescendência, indulgência. A tolerância é, antes de tudo, uma atitude ativa fundada no reconhecimento dos direitos universais da pessoa humana e das liberdades fundamentais do outro. Em nenhum caso a tolerância poderia ser invocada para justificar lesões a esses valores fundamentais. A tolerância deve ser praticada pelos indivíduos, pelos grupos e pelo Estado.1.3. A tolerância é o sustentáculo dos direitos humanos, do pluralismo (inclusive o pluralismo cultural), da democracia e do Estado de Direito. Implica a rejeição do dogmatismo e do absolutismo e fortalece as normas enunciadas nos instrumentos internacionais relativos aos direitos humanos. 1.4.[...] praticar a tolerância não significa tolerar a injustiça social, nem renunciar às próprias convicções, nem fazer concessões a respeito. A prática da tolerância significa que toda pessoa tem a livre escolha de suas convicções e aceita que o outro desfrute da mesma liberdade. Significa aceitar o fato de que os seres humanos, que se caracterizam naturalmente pela diversidade de seu aspecto físico, de sua situação, de seu modo de expressar-se, de seus comportamentos e de seus valores, têm o direito de viver em paz e de ser tais como são. Significa também que ninguém deve impor suas opiniões a outrem.”18
O mesmo documento (art. 2º) estabelece os deveres do Estado na promoção da tolerância. Consta do texto (aqui parcialmente citado): “2.1. No âmbito do Estado a tolerância exige justiça e imparcialidade na legislação, na aplicação da lei e no exercício dos poderes judiciários e administrativo. Exige também que todos possam desfrutar de oportunidades econômicas e sociais sem nenhuma discriminação. A exclusão e a marginalização podem conduzir à frustração, à hostilidade e ao fanatismo. 2.3.[...] Sem a tolerância não pode haver paz e sem paz não pode haver nem desenvolvimento nem democracia”.19
A importante declaração (art.4º, aqui parcialmente citada) apregoa a educação como meio indispensável para a superação da intolerância, ao dispor: “4.1. A Educação é o meio mais eficaz de prevenir a intolerância. A primeira etapa da educação para a tolerância consiste em ensinar aos indivíduos quais são os seus direitos e suas liberdades a fim de assegurar seu respeito e de incentivar a vontade de proteger os direitos e liberdades dos outros. 4.2. [...]As políticas e programas de educação devem contribuir para o desenvolvimento da compreensão, da solidariedade e da tolerância entre os indivíduos, entre os grupos étnicos, sociais, culturais, linguísticos e as nações.”20
Diante de tais esclarecimentos, propostas e desafios nascem perguntas a exigirem reflexão: tendo-se em conta que o pluralismo religioso, filosófico e ideológico é realidade inconteste da complexa sociedade contemporânea e merece respeito e proteção no âmbito da Democracia, do Estado Democrático de Direito, conforme estabelecido na Constituição da República, como vai, no Brasil, o exercício da tolerância, na família, na escola, na empresa, na política, nas relações entre diferentes religiões, diferentes “visões de mundo”? Sabendo-se, conforme ensina o filósofo Foucault,21 que o poder permeia as diversas relações sociais, cabe perguntar: como estão, nestes mesmos ambientes e esferas, as relações entre poder e tolerância? O que se deve e o que se pode fazer em prol de mais tolerância positiva - como caminho para o entendimento e a paz no convívio com os outros e suas diferenças - e menos tolerância negativa para com a impunidade, a corrupção, o “jeitinho”22 que menospreza o princípio constitucional da igualdade de todos perante a lei, deixando-se transparecer, às vezes, a ousadia de alguns indivíduos pretenderem até mesmo a “privatização” do poder político? A República e a Democracia veem a tolerância positiva entre os diferentes como uma virtude indispensável à paz e ao bem comum. Todavia, tanto a República quanto a Democracia, em razão de seus princípios fundamentais (arts. 1º a 4º da CF), não podem e não devem tolerar ações ofensivas às suas instituições republicanas e democráticas, isso porque por meio da Constituição estabelecem a origem popular do poder tal poder só se legitima quando a serviço do “bem de todos” (CF, art.3º, IV) e não do bem de apenas alguns. “Todos” significa inclusão de todas as pessoas, independentemente de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Sem o respeito a tais princípios nada haveria a comemorar nos dias 15 e 16 de novembro. E aí se revela o momento e a razão de ser do Direito e de suas “fontes formais” (Constituição, pactos internacionais, leis infraconstitucionais) serem aplicados para frear os abusos e mau uso da própria tolerância que, em seu sentido positivo, jamais se confunde com aquele negativo manifestado pela indiferença, pelo preconceito que leva à omissão de deveres e condescendência com atos que ferem valores fundamentais ao convívio digno, pacífico e democrático.
Somente quando bem compreendidos - e tal compreensão depende de educação que a possibilite - os significados e a importância da tolerância e da República é que as datas comemorativas que se aproximam (15 e 16 de novembro) ganham sentido e passam a merecer autêntica celebração. Um brinde à tolerância e à República Federativa do Brasil! Tim, tim!
[1] UNESCO. Declaração de Princípios sobre a tolerância. In: CARDOSO, Clodoaldo Meneguello. Tolerância e seus limites. São Paulo: Unesp, 2003 (Anexos, p.189 a 197).
[2] Idem, p.196.
[3] Cf. Foro Internacional sobre Intolerância (1997:Paris, França). A Intolerância. Academia Universal das Culturas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. Trata-se de obra que reúne 35 textos dos participantes do Fórum Internacional sobre a Intolerância, realizado na Sorbonne, em março de 1997.
[4] Cf. BITHENCOURT. Francisco. Racismos: Das Cruzadas ao Século XX. Para o referido autor, “a violência diária entre etnias continua a ser visível em diferentes partes do mundo”. E acrescenta que “é preciso ainda percorrer um longo caminho para cumprir o sonho da dignidade humana e da real implementação dos direitos humanos. (p.509). Cf. também WIEVIORKA, Michel. O Racismo, uma Introdução. São Paulo: Perspectiva, 2007.
[5] Cf. sobre tal tema ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. Xenofobia: Medo e Rejeição ao Estrangeiro. São Paulo: Cortez, 2016.
[6] Cf. PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (orgs.). Faces do Fanatismo. São Paulo: Contexto, 2004. A obra reúne textos de historiadores e pesquisadores de outras áreas sobre o fenômeno do fanatismo (fanatismo religioso, fanatismo racista, fanatismo político e fanatismo esportivo, segundo as quatro modalidades analisadas pelos autores).
[7] Para o filósofo MICHAEL WALZER, “a tolerância torna a diferença possível; a diferença torna a tolerância necessária”. Cf. Walzer. Michael. Da Tolerância. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. XII.
[8] Cf. FROMM, Erich. O Coração do Homem: seu gênio para o Bem e para o Mal, 6ªed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981. (pg.39 e seguintes).
[9] Cf. LOCKE, John. Carta Sobre A Tolerância. Lisboa: Edições 70, 1997.
[10] Cf. VOLTAIRE. Tratado sobre a Tolerância. São Paulo: Edipro,2017.
[11] Cf. MILL, John Stuart. Sobre a Liberdade. Petrópolis/RJ: Vozes, 1991.
[12] Cf. BETHENCOURT. Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália- séculos XV-XIX.
[13] Cf.ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado Absolutista. São Paulo: Brasiliense, 2004. LOPES, Marcos Antônio. O Absolutismo: política e sociedade na Europa Moderna. São Paulo: Brasiliense, 1996.
[14] A Constituição da República Federativa do Brasil estabelece no art. 5º, VI: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.
[15] Sobre tal temática cf. JACOBINA, Paulo Vasconcelos. Estado Laico, Povo Religioso: reflexões sobre liberdade religiosa e laicidade estatal. São Paulo: LTR, 2015. SOLER, Marcos. A Igreja e o Direito Brasileiro. São Paulo: LTR, 2010. CIFUENTES, Rafael LLano. Relações entre a Igreja e o Estado, 2ªed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. MILANI, Daniela Jorge. Igreja e Estado: relações, secularização, laicidade e o lugar da religião no espaço público. Curitiba: Juruá, 2015.
[16] LOCKE, John. Op. cit. p. 105.
[17] BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus,1992. (p.211).
[18] Unesco. Declaração de Princípios sobre a Tolerância.
[19] Idem.
[20] Unesco. Declaração de Princípio sobre a tolerância.
[21] Cf. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder, 8ªed. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
[22]Sobre este tema cf. ROSEN, Keith S. O Jeito na Cultura Jurídica Brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 12 e 13. Diz o autor: “Vários autores têm observado que a diferença entre o direito escrito e o aplicado na prática é notoriamente grande na América Latina. A peculiaridade no Brasil é que essa prática de desvio das normas legais para alcançar o fim desejado elevou-se de um modo tal, que resultou na criação de uma instituição paralegal altamente cotada conhecida como “o jeito”. O jeito se tornou parte integrante da cultura jurídica do Brasil. Em muitas áreas do direito, o jeito é a regra; a norma jurídica formal, a exceção”. Espera-se que, mediante o esforço indispensável de fortalecimento das instituições democráticas, tais constatações fiquem no passado e deixem de corresponder à triste realidade descrita pela referida obra.
"Sandra Delallo e os Clássicos do Piano"
Professora e exímia pianista, a convidada nos brindou com a interpretação de duas músicas de repertório clássico: "De Gradus ad Parnassum", de Claude Debussy e "Improviso Op. 66", de Chopin.
Ouça e veja a audição no vídeo:
https://www.youtube.com/watch?v=cK3lMM8Wjf0&feature=emb_logo
* Sandra Secco Delallo é natural de Astorga PR.
Concluiu o curso de piano no Conservatório Musical Santa Cecília de Arapongas e manteve formação continuada com vários professores particulares.
Licenciada em Educação Artística pela UFPr.
Licenciada em Música pela UEL.
Pós graduada em performance do Piano pela UEL, apresentando-se como solista em repertório individual e concerto com orquestra.
Atua como professora de música desde 1974, nos vários níveis, tendo orientado alunos que se tornaram músicos e professores de música.
Organiza desde então apresentações musicais atuando como professora e intérprete.
Atualmente é professora na Escola Cantata e no Conservatório Musical de Londrina.
"A Difícil Arte do Desapego"
Acadêmica Neusi Berbel
Uma reflexão num contexto entre o Ter e o Ser numa sociedade tecnológica
Vivemos numa época de grandes mudanças, entre elas as tecnológicas. Tivemos que ir aprendendo a conviver com essas mudanças, para sobreviver e também buscar viver. Falo de minha vivência em geral e também a partir da minha profissão no magistério.
Não tenho a pretensão de tratar amplamente do tema aqui, tal como é desenvolvido em várias áreas, como na religião, na sociologia, na área médica e principalmente na psicologia, com a psicanálise, em que se pode até mesmo encontrar a Teoria do Apego e seu contrário. Vou, neste espaço, dar apenas um destaque para o tema! Ele poderá ser ampliado por especialistas no futuro!
A minha geração, já no trabalho, viu a máquina de escrever substituída pelo computador, o mimeógrafo substituído pela impressora, os diapositivos ou pequenos slaides substituídos pelas transparências e depois pelos slaides como um programa de computador etc. Tudo isso, primeiro incorporado pelas instituições, depois entrando em nossas casas.
Ao mesmo tempo, a aquisição de livros, antes pela biblioteca, foi sendo incorporada pelos professores, que foram se deparando com mais e mais alternativas de abordagens para seus conteúdos e mais elementos explicativos pelas ciências complementares ou mesmo fundantes de sua área. Compramos livros e mais livros para nossa biblioteca particular ! Passamos a ter cada vez mais livros e outros materiais pensando que assim poderíamos vir a ser cada vez melhores professores.
Nessa mesma linha de pensamento, passamos a ter também cada vez mais títulos (de especialização, mestrado, doutorado, pós-doutorado) e ao mesmo tempo produzir e publicar cada vez mais livros, capítulos, artigos etc., para sermos reconhecidos como bons profissionais em nossa área! E nos apegamos a isso!
Muita coisa funcionou!!! Crescemos em conhecimentos e elaborações numa subárea cada vez mais reduzida. Desenvolvemo-nos em algum sentido e contribuímos para o desenvolvimento de nossos alunos, também em algum sentido!!!
Aos poucos, o avanço da tecnologia foi-nos apresentando produtos maravilhosos e o telefone e a máquina fotográfica foram sendo substituídos pelo celular, cada vez menor e mais potente. A comunicação ao celular foi facilitada (por áudio, por escrito ou por vídeo) e foi sendo acrescida ou substituída por mensagens e vídeos elaborados por outros! De tão maravilhados com essas criações, as fomos acumulando em nossos aparelhos, que também foram sendo substituídos por outros com mais memória e recursos, mesmo que não soubéssemos como bem explorá-los!!!!
Fomos adquirindo! Pela crença de que era o certo a fazer! A influência do meio foi decisiva sobre nossas crenças, desejos e ações! O trecho do poema de Caetano Veloso (1) na música Dom de iludir, que diz “...Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, afirmação com a qual eu sempre concordei, foi sendo substituída por mim por “Cada um sabe a dor e a delícia de ter o que tem”, pois a sociedade para o consumo nos atingia/atinge de muitas maneiras e vamos nos apegando ao que consumimos!
No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (3) encontramos, entre outros sentidos, que apegar significa “fazer aderir a, colar, agarrar-se”. Para o termo apego, encontramos: “uma ligação afetuosa, afeição, estima. Dedicação constante ou excessiva a algo” (p.249).
Ao buscarmos o termo desapego, encontramos no mesmo dicionário: “1- qualidade ou estado de quem revela desamor por alguém; 2- qualidade ou estado de quem demonstra indiferença, desinteresse, desprendimento pelas coisas ou certa coisa em particular, despego” (p.955).
Osho, conhecido Guru indiano, buscava explicar que nos agarramos a algo porque temos medo de perdê-lo, de que amanhã não possamos mais ter aquilo que hoje temos. E afirmava que “o amor é a única libertação do apego. Quando você ama tudo, não está preso a nada” (2).
Para Osho, o apego é a sede, o desejo ardente de possuir. É essa uma razão de grande parte de nossos sofrimentos e nossas frustrações. Apegamo-nos aos seres humanos, aos seres viventes, aos bens (riqueza, posse, o ter, o saber), a ideias, ideais, opiniões, crenças, concepções, ideologia, entre outros objetos.
Dizia ainda o Guru: “Todas as nossas misérias e sofrimentos não são nada mais do que apego. Toda a nossa ignorância e escuridão é uma estranha combinação de mil e um apegos”. Se começarmos a desapegar-nos, uma tremenda libertação de energia acontecerá dentro de nós.
Eis que, de alguma maneira, vamos tendo que aprender a nos desapegar de nossos bens de todas as naturezas! Não sem sofrimento, mas, porque, segundo Osho, “o desapego é certamente a essência do caminho”.
Não por desprezá-los, mas para viver de modo mais leve, já que naturalmente, ao chegarmos numa idade mais madura, precisamos cada vez mais de mais energia para poder carregar cada vez menos.
Na grande maioria dos casos, fomos trocando casas mais espaçosas por apartamentos mais práticos e neles não há espaço para tantos livros que não usamos, principalmente após nos aposentarmos!
Mesmo distribuindo pelas bibliotecas que aceitam livros físicos - estes estão sendo substituídos pelos livros virtuais!!! Eu mesma já tenho dois deles!!! - deixando em sebos ou doando para outras instituições, o acúmulo de livros que nos são caros precisa ter destinação. Isso nos causa um novo conflito entre o ter e o ser!
Bom quando encontramos pessoas que possam aproveitar! Se tiverem condições de ler e se apropriarem do que leem!!! Tenho doado alguns a estudantes matriculadas num curso de Pedagogia a distância, com a duração de 1 ano!!!
Não tem como não me preocupar com essa formação para o magistério, tendo em mente que o meu curso de Pedagogia foi de 4 anos presenciais, com complemento de um ano e meio, que teve o acréscimo depois de uma especialização, depois mestrado, doutorado e pós-doutorado... Tudo isso sem a garantia e a convicção de conduzir com excelência salas de aula de formação de professores, que demandam permanente atualização, já que a sociedade está em constante mudança, e nela, as escolas e os alunos também, dia a dia!!!!
Na hora de separar o que doar e o que guardar ainda por um tempo, o apego aparece, e forte !!! Como me desfazer dos livros que escrevi ou no qual atuei com a minha organização, com capítulos, com prefácio etc.? Como me desprender das revistas em que tenho artigos publicados? Tudo já foi publicizado, pois foi para isso escrito e publicado, mas tenho que ter uma cópia!!!
Quanto tempo empenhado! Quanta leitura! Quanta busca de respostas! Quantas escolhas de modo de vida por um modo de ser profissional? O quanto deixamos nossa casa, nossa vida pessoal e nossos filhos para essas elaborações e conquistas?
Pagamos caro o preço para ter o que temos, iludidos de que nos levam a ser o que queremos ser!
Então, o desapego, mesmo conscientemente reconhecido como necessário, é doloroso!
Em alguns setores, mais difícil ainda, como no meu caso! Meu apego às minhas Aquarelas ainda é muito grande! Me apeguei a cada uma ao ponto de gostar de ad-mirá-las, mesmo em sua simplicidade!
O meu apego se mostra, neste momento, também em outro setor: o das fotos e vídeos no meu celular! Entre as duas formas, contavam mais de sete mil ! Fotos e vídeos recebidos com muito carinho de amigos e familiares! Guardados para recorrer a eles de vez em quando, por um tema, por uma saudade, por uma beleza contida, para um compartilhar oportuno!
E o pior! O celular, objeto que deveria ser inanimado, não é! Ele me dá um ultimato! Não tem mais espaço para armazenagem! Não insista ! Como se dissesse: Ou eles ou eu não funciono mais!!! E o que faço com isso?
Vamos lá! Vamos aprender! Vamos buscar algumas fotos para guardar no computador e alguns vídeos mais expressivos! Puro apego! Curiosamente, o pensamento de OSHO, se aplica aqui com muita clareza! Se eu começar a desprender-me das fotos e vídeos, uma tremenda liberação de energia (espaço de armazenagem, no caso do celular !) acontecerá!
Então... é inevitável exercitar o desapego, cortando na pele ! É cruel !
Mais uma vez: “Cada um sabe a dor e a delícia de ter o que tem” e será que ter, o faz ser o que é?
Uma coisa é certa: o desapego requer esforço! É preciso tempo! É preciso também um critério para as escolhas! A beleza da fotografia/ das imagens? O texto/o roteiro? As cores? O remetente? Os autores? Os sons ... Qual?
Seja lá qual ou quais critérios, a escolha será inevitável! Por isso, mesmo nesses campos aqui exemplificados, de ordem material, é muito difícil exercer a Arte do desapego!
Podemos então imaginar em outros, quando o foco de apego sejam ideais, crenças ou seres humanos!
Vamos refletir!
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(1) Veloso, Caetano. Música Dom de Iludir. Capturado em https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/44719/, em 08/10/2020.
(2) http://portaldobudismo.com/2014/05/30/osho-o desapego/ Capturado em 3/10/20 de https://medium.com/@patycalazans/o-desapego-lindo-texto-do-mestre-osho-a41d16e33842
(3) Houhaiss, Antonio (1915-1999) e Villar, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
"Maura Lopes Cançado - Literatura e Loucura"
Celia Musilli *
No fim da década de 1950, Maura Lopes Cançado, internada num hospício, escreve um diário. Durante cinco meses, de outubro de 1959 a março de 1960, dedica-se a relatar tudo o que acontece ao seu redor, misturando a dor da sua condição psicótica a descrições do ambiente lúgubre em que vivia: “O hospício é árido e atentamente acordado, em cada canto, olhos cor-de-rosa e frios, espiam sem piscar.”
A referência aos olhos é uma alusão ao ambiente vigiado do Hospital Gustavo Riedel, no bairro do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro, onde os portões eram trancados, os muros altos, todos cumpriam uma rotina rígida e as internas eram controladas por tratamentos que incluíam os eletrochoques, além de doses maciças de medicamentos. O diário, publicado pela primeira vez em 1965, pela José Olympio, recebeu um título curioso: Hospício é Deus. Ao escrevê-lo, Maura saltou o muro do manicômio e ganhou reconhecimento como autora.
A imagem dos olhos – ou do olhar – trespassa o livro como símbolo da vigilância institucional e também do testemunho da autora. Ver e contar torna-se neste período sua principal atividade; ela transforma a escrita num estímulo cotidiano e, ao mesmo tempo, num instrumento de denúncia. A situação de ser vista e vigiada, assim como de olhar e relatar, articula-se com o título do seu segundo livro: O Sofredor do Ver, publicado em 1968, também pela José Olympio, e que só teve uma segunda publicação em 2011, pela Confraria dos Bibliófilos do Brasil, reunindo doze contos, sendo que alguns remetem a situações e personagens do manicômio.
Hospício é Deus, seu livro mais conhecido, mostra a intensidade da sua escrita, aliando a angústia a um grande potencial literário. Trata-se da força expressiva de quem faz outra leitura do mundo, plasmada por uma percepção dilatada das coisas mas sem perder a lucidez, embora no diário faça uma auto-representação da louca, dando voz a si mesma e a suas companheiras de hospício. O livro é um documento de época que mostra o tratamento dispensado à loucura, uma situação trágica tendo em vista os tratamentos dolorosos e até desumanos. A autora faz uma crítica feroz ao sistema psiquiátrico em vigor no período de seus internamentos que foram muitos, já que passou a vida entrando e saindo de manicômios até falecer em 1993, aos 63 anos.
O interessante na sua obra é que não se trata apenas de “escrita de denúncia,” abordada em muitas pesquisas, mas da expressão de ideias num plano simbólico que se articula como uma espécie de “inconsciente da obra.” Maura utiliza muitas imagens e metáforas, recursos ainda mais presentes em seu livro de contos O Sofredor do Ver, que considero sua grande obra, com uma linguagem que se distancia dos lugares comuns. Não à toa o crítico Assis Brasil, um dos poucos - senão o único crítico renomado a analisar com mais profundidade seu livro de contos - a considerava uma revelação literária dos anos 50/60. No prefácio ao livro A Nova Literatura – O conto III, ele elenca uma série de autores que considerava importantes, Maura está entre eles. Ainda assim, é pouco conhecida, pouco estudada, o número de teses e dissertações sobre sua obra é pequeno e a crítica praticamente a ignora.
Comparo seus livros a caleidoscópios, repletos de imagens literárias que descobrimos girando de um lado a outro, sendo possível muitas leituras. Para fazer esta abordagem, o surrealismo torna-se um parâmetro interessante, não para classificar Maura como “autora surrealista”, mas para perceber em sua escrita traços surrealistas que em algumas pesquisas são identificados apenas de passagem, sem o aprofundamento ou uma explicação capaz de distinguir essa característica. Na sua obra encontrei o encantamento da linguagem surreal, aquela que tira faíscas das palavras, iluminando novos sentidos por aproximações inusitadas como nos títulos de seus livros: Hospício é Deus e O Sofredor do Ver. Trata-se de literatura sofisticada, às vezes complexa ou quase inescrutável a ser lida com todos os sentidos, buscando na recepção uma pulsação que acompanhe sua criação.
Maura às vezes é de tirar o fôlego. Um caminho é tomar sua escrita pela ótica da eficácia estética, porque não basta ser louco, como muitos apontam como sua característica relevante, tem que escrever bem, fazer literatura, e isso ela fez magistralmente. Sua obra às vezes requer um cruzamento com seus dados biográficos, onde se encontram alguns de seus motes de criação: ela transformava colegas de manicômio em personagens de contos, ficcionalizava suas histórias. Não dá para ignorar este aspecto de imbricamento, alguns de seus contos são melhor compreendidos a partir de seu diário porque há uma transposição de situações de uma obra realista para sua obra ficcional. No entanto, embora o estigma da loucura pese muito sobre Maura, sua obra ainda requer interpretações não sob um ponto de vista psicopatológico, mas literário. Há muito a se descobrir e dizer sobre ela.
UMA AUTORA VERSÁTIL
Maura Lopes Cançado escreveu em diversos gêneros, é autora de poemas, contos e também do diário que se caracteriza como “escrita de si.” Dividiu espaço com intelectuais como José Louzeiro, Carlos Heitor Cony, Assis Brasil e Ferreira Gullar ao publicar alguns de seus contos noSuplemento Dominical do Jornal do Brasil – SDJB – considerado um caderno literário de vanguarda entre os anos 50 e 60. Até por isso, em alguns momentos seu diário apresenta traços jornalísticos como a criação de manchetes para dar conta do cotidiano do hospício. Ela escreve em letras garrafais: “EXTRA! EXTRA! O CRIME DA GRAVATA NOVA!”, mostrando não só verve de repórter como uma boa dose de humor. Apesar do sofrimento, encontra-se em seus textos uma versão de humor negro, caro a alguns surrealistas. Ela também se valia da ligação que tinha com o Jornal do Brasil – onde publicava contos, mesmo estando internada – e da amizade com jornalistas como condição que lhe conferia prestígio, como autora era vista de outro modo no manicômio, gozava de um status e isso, às vezes, transparece como motivo de orgulho em seus textos. Foi através da condição de autora que adquiriu uma nova identidade, não sendo “apenas um prefixo no peito do uniforme” como descreve em Hospício é Deus os internos que formavam a massa da loucura. A literatura a colocava em outro plano, remetendo ao conceito de arte como “organização da experiência”, valorizado por críticos como o norte-americano I.A. Irving e Antonio Cândido.
Em matéria de gêneros Maura é eclética, escreveu como quem mexe no dial de um rádio. Os amigos jornalistas frequentemente são citados no seu diário para formular críticas ou como motivo de orgulho por contar com pessoas consideradas influentes, dependendo do momento ou da circunstância, da cumplicidade ou da decepção. Quando a situação ficava difícil, ela chamava Reynaldo Jardim – editor do Suplemento Dominical e um dos primeiros a valorizar sua obra – ou queria falar com Ferreira Gullar, Alice Barroso e outros conhecidos para quem telefonava.
Já o livro de contos que se encontra esgotado, pode ser considerado uma raridade que revela muito sobre Maura. Um dos seus contos mais conhecidos, “No quadrado de Joana”, traz uma personagem catatônica, cuja obsessão é andar em linha reta no pátio do hospício. Outro conto, “Introdução a Alda”, é dedicado a uma colega do manicômio cujo verdadeiro nome era Auda. Este conto parece uma espécie de “bula” que os médicos deveriam conhecer para desvendar as emoções delicadas de uma psicótica, coisa difícil de acontecer no hospital em que Maura vivia. Já “Espiral Ascendente” traz uma experiência real: a autora ao encenar uma peça de teatro no papel de Ofélia – a personagem de Shakespeare - numa apresentação ao ar livre, tirou a roupa, postou-se no alto de uma pedra, ameaçando jogar-se de uma cachoeira, situação que bem lembra o Teatro da Crueldade de Antonin Artaud que pretendia implodir os limites entre o real e o simbólico em busca de encenações autênticas e sem fronteiras que aproximassem arte e vida. Maura se deu a este “luxo” cênico, num momento tão complexo quanto arriscado que acabou transportando para a literatura.
A INCLUSÃO DA LOUCURA
Na História da Loucura, Michel Foucault mostra que o estigma da doença tornou a insanidade um campo fechado que, ao longo dos séculos, fascinou e amedrontou muita gente. A loucura seria uma experiência próxima da morte, capaz de oferecer uma peculiar liberdade que também nos instiga, nos espreita e nos faz livres, justamente por transpor os limites da compreensão racional. Maura é um dos tantos exemplos de escritores, filósofos e poetas que tiveram suas obras atravessadas pela "noite da loucura". Mas há estruturas e imagens nos seus textos que nos colocam diretamente diante dessa experiência, uma construção artística que oscila entre a racionalidade e seu transbordamento. Uma relação importante que se pode fazer a partir do título de seu diário Hospício é Deus é interpretá-lo, em seu teor provocativo, como um título que reúne dois grandes temas filosóficos: Deus e a loucura que nos proporcionam, à primeira vista, uma ideia de incompreensão e complexidade, um abismo que se abre diante da grandiosidade. Uma imensidão que não é só seu enigma como sua explicação.
A simbologia na obra de Maura é muito forte, assim como o atrito das palavras, combustão que pode nos levar a uma abordagem surrealista. Fora isso há o aspecto da vigilância porque Maura era vigiada e, de certa forma, também vigiava o hospício, fazendo dele um tema constante. Comparo sua escrita à linguagem cinematográfica, sua experiência a um reality show, como se Maura ligasse no hospício uma câmera 24 horas, vendo e relatando tudo. Ela mesma diz muitas vezes que está inserida num contexto, num ambiente “que só o cinema seria capaz de mostrar”. Isso revela muito da sua obsessão pela linguagem perfeita, que capte a realidade em detalhes. Além disso, revela nos contos uma forma de olhar bastante original, o verbo “ver” permeia toda sua obra, tanto que escreveu um livro e um conto homônimo intitulados “O Sofredor do Ver”.
Num trecho de Hospício é Deus, ela descreve a loucura fundida com a condição feminina: "Nós, mulheres despojadas, sem ontem nem amanhã, tão livres que nos despimos quando queremos. Ou rasgamos os vestidos (o que dá ainda um certo prazer). Ou mordemos. Ou cantamos, alto e reto, quando tudo parece tragado, perdido. [...] Nós, mulheres soltas, que rimos doidas por trás das grades - em excesso de liberdade". Nos seus escritos, o "ser mulher" está próximo de uma região de loucura, onde é possível rir plenamente, existir sem tempo, ir em frente apesar da flagrante contradição de ser prisioneira, resistir livre, no prazer e na sensualidade, ainda que esteja apartada do mundo. Acredito que para Maura, a literatura é realmente a representação desta liberdade, o leitmotiv que a fez manter-se viva.
No diário, ela também cita o Dr. A, um psiquiatra negro que foi seu grande amor no hospício, assim como fala do pai – com quem manteve uma relação meio edipiana – do ex-marido, do ex-sogro, do filho Cesarion, mas os homens figuram mais como dados biográficos, pois ela mantém sua atenção sobre personagens femininas. Como mulher, se expressa de forma muito sensual no diário, era vaidosa, narcisista, maquiava-se bem, exibia as pernas, gostava de ser vista e admirada, colocando-se de “forma artística” no manicômio, a ponto de dançar no telhado. Mas a condição feminina estava introjetada nela sem que isso se relacione a uma busca de emancipação, era naturalmente independente e rebelde. Numa entrevista ao jornalista João da Penha, da revista Escrita, nos anos 70, Maura fala dos gêneros sem fazer diferença entre homens e mulheres, sem arroubos feministas. O que não deixa de ser um feminismo exemplar, uma igualdade já assimilada que nem sequer observa as diferenças. Nesta entrevista, ela diz que não se expressa como mulher, mas como ser humano.
É importante ressaltar que Maura, além de autora, foi uma pessoa criativa que deu margem também a muita ficção em torno da sua vida, como no caso de um episódio comentado pelo jornalista e escritor José Louzeiro num artigo que relaciona a loucura de Maura a um incidente com um avião na juventude. Maura, quando jovem, fez curso para tirar o brevê e ganhou da mãe um avião Paulistinha, um luxo do qual podia usufruir porque era filha de um fazendeiro muito rico de Minas. Este incidente – o avião teve que fazer um pouso de emergência e causou alguns estragos numa cidadezinha do interior – chegou a ser visto como sintoma de loucura, de um surto, mas a própria Maura diz no diário que quem pilotava o avião naquele dia era um amigo, não ela, que era apenas passageira. Não é possível defender nenhuma versão sobre fatos de sua vida como verdade absoluta, porque a vida de Maura foi bastante fragmentada e há muitas informações desencontradas sobre ela. Mas é possível observar que é frequente alimentarem-se fantasias em torno da vida dos loucos, a lenda é sempre mais fascinante que a realidade, mas tendo em vista seu próprio relato sobre o incidente com o avião, creio que se deva levar em conta também o que ela diz e não só o que dizem sobre ela, embora a Maura “escritora e louca” seja uma personagem e tanto. Também pesava sobre ela um homicídio: matou uma colega de quarto em uma clínica psiquiátrica. No julgamento foi considerada inimputável por causa da doença, por haver cometido o crime durante um surto.
Acredito que a primeira obrigação de quem analisa a obra de um louco seja lhe devolver a palavra, o direito de se expressar com legitimidade. No caso de Maura há um documento que pode ajudar a fazer prevalecer sua palavra: o diário Hospício é Deus, considerado um relato lúcido. Devolver-lhe a palavra é o que venho tentando desde que encontrei o primeiro artigo sobre ela em 2009 e o desdobrei numa pesquisa que não abarca tudo o que se pode ainda dizer sobre sua obra. A loucura como a literatura são territórios sem fim.
* Jornalista, cronista, poeta, autora dos livros "Londrina Puxa o Fio da Memória" (editora Letra d'Água/ 2004) de memórias de Londrina; "Sensível Desafio", poesia ( Editora Atrito Art/ 2006) e "Todas as Mulheres em Mim", poesia ( Coleção Tríade/ editoras Atrito Art e Kan/ 2010).
Tem textos publicados em coletâneas, jornais e revistas literárias do Brasil e Portugal.
Atualmente é editora de Cultura da Folha de Londrina.